Opinião
O espólio bolsonarista
Ao pregar, no Congresso Nacional, a ‘ideologia de gênero’ e a transfobia, Nikolas Ferreira comunica-se de maneira direta com os herdeiros do governo do ódio
Quem deseja compreender a realidade para além de sua aparência não pode se dar ao luxo da ingenuidade. Não sejamos, portanto, ingênuos: o bolsonarismo é uma herança política e social e, sobre ela, se digladiam aqueles que a reivindicam.
Temos um farto banquete fascista, erguido sobre quatro anos de ódio, morte e destruição, mas ainda sem um “grande pai” para chamar de seu. Ao acionar, em esfera federal, o discurso da “ideologia de gênero”, Nikolas Ferreira demonstra saber como se alça um fascista à posição de figura política nacional.
Nikolas Ferreira tem 26 anos, foi o deputado federal mais votado do País, por um partido reacionário e conservador, o PP, e construiu sua persona política através das redes sociais, viralizando, via reprodução, discursos de ódio, do senso comum e da polêmica.
No dia 8 de março – data que marca a luta histórica das mulheres trabalhadoras contra as opressões e o sistema que as deslegitima e, muitas vezes, mata –, ele subiu à tribuna do Congresso Nacional, durante uma sessão especial, presidida por Maria do Rosário (PT) e reproduziu um discurso que vilipendia e mata mulheres trans. Usando peruca loira e dizendo ser a “Deputada Nikole”, o aprendiz de fascista conseguiu sua primeira viralização como deputado federal.
O show de horrores não se restringiu à impertinência da fala do deputado na sessão plenária ou ao conteúdo criminoso do discurso. Não. Em uma sociedade marcadamente cruel, que recompensa os sujeitos que produzem discriminação, superexploração e morte de grupos minorizados, o show de horrores teve outros desdobramentos.
O ato rendeu ao deputado transfóbico mais de 350 mil seguidores, segundo relato dele próprio à rádio Jovem Pan. Já o abaixo-assinado proposto e liderado pela deputada Erika Hilton (PSOL) possuía, até o dia 11, 270 mil assinaturas. Dois dias após seu discurso criminoso, Nikolas foi confrontado, em um voo, pela jornalista Ana Paula Renault. Segundo ela, a maioria dos passageiros posicionou-se ao lado do transfóbico.
Episódios como esse explicitam a faceta perversa da sociedade brasileira, que, há 14 anos, lidera o número de assassinatos de pessoas trans no mundo. De acordo com o último dossiê sobre assassinatos e violência contra pessoas trans no Brasil, organizado por Bruna Benevides e publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), ao menos 151 pessoas trans morreram no País em 2022. A mais jovem tinha 15 anos.
O dossiê registra ainda 142 violações de direitos humanos para essa população, bem como um aumento acentuado no impedimento para que usem banheiros. A pesquisa é enfática ao apontar a subnotificação de casos e a ineficiência do Estado em mapear e combater essas violências. Para se ter uma ideia, enquanto, no caso dos suspeitos de ataques, a regra é a ausência de dados e o anonimato, no caso das vítimas, o que se vê é a exposição de seus nomes de registro – e quase nunca há menção a seus nomes sociais.
Nikolas compreende bem a lógica perversa da sociedade que o elegeu e que o aplaude e alimenta, como plateia, seu espetáculo cruel – Minas Gerais, cabe lembrar, é o quarto estado mais letal para a população trans no País. Sua comunicação parece, além disso, explicitar o projeto de um novo candidato a protagonista do espólio bolsonarista.
No momento em que Nikolas é autorizado a utilizar o plenário para enaltecer a intolerância, a violência e o ódio, vemos a reencenação do calhorda que homenageava torturadores, pregava o extermínio de populações indígenas e a eugenia para os mais pobres via esterilização compulsória. Se as esferas capazes de barrar tal prática e atuar na cassação de seu mandato não agirem, teremos a explícita continuidade daquilo que tornou o Brasil um terreno propício ao fascismo.
É, portanto, dever daqueles e daquelas comprometidos com os direitos humanos e a democracia agir, em especial neste momento em as forças políticas investem em uma nova “redemocratização”. Sem respeito e proteção às populações minorizadas, não há projeto democrático possível. A preservação do mandato de Nikolas Ferreira significa manter estendidos os tapetes vermelhos para que, sobre eles, os próximos fascistas avancem e venham nos pisotear. •
Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O espólio bolsonarista’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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