Rafael R. Ioris

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Professor na Universidade de Denver e Pesquisador do Instituto de Estudos do Estados Unidos (INCT-INEU)

Opinião

O equívoco da interpretação hegemônica sobre a política externa de Lula

Apesar das críticas recentes, a abordagem de Lula no cenário internacional reflete a tradição diplomática do Brasil

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante sessão plenária da 8ª Cúpula da Celac, em Kingstown, São Vicente e Granadinas. Foto: Ricardo Stuckert/PR
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Muita saliva e muita tinta foram gastas nos últimos dias para criticar o comportamento que o presidente Lula tem mantido no cenário internacional. Grande parte dessas críticas se ancora em uma leitura equivocada tanto da trajetória histórica da política externa brasileira quanto do que fez Lula nos seus dois primeiros mandatos, assim como do que tem buscado fazer agora.

É fato amplamente reconhecido que a diplomacia brasileira historicamente se estruturou na defesa do multilateralismo, da resolução pacífica dos conflitos e da autodeterminação dos povos. Mas, ainda que seja possível defender tais princípios por diferentes caminhos — e embora Lula possa ter cometido excessos em algumas afirmações ou mesmo em iniciativas diplomáticas nos últimos tempos — nada do que ele tem tentado promover ao longo dos últimos 14 meses contradiz ou nega os eixos e valores fundamentais da tradição diplomática brasileira.

De maneira concreta, antes mesmo de reassumir a cadeira presidencial, em novembro de 2022, na COP-27 no Egito, Lula angariou respeito e apoio amplo em sua defesa por formas multilaterais e cooperativas de buscar dar conta de um dos maiores desafios do mundo de hoje, a crise climática.

No mesmo sentido, assim que começou seu novo governo, Lula tem tentado reavivar os rumos de uma política externa que tantos frutos rendeu no início do século XXI. Fez isso mantendo uma ambiciosa agenda de viagens internacionais que, como em seus primeiros mandatos, buscaram equilibrar encontros junto a parceiros tradicionais ao mesmo tempo em que tentava resgatar e expandir projetos ligados à chamada agenda do Sul.

Seu périplo iniciou pela vizinha Argentina, tendo ido logo em seguida a Washington, onde encontrou Joe Biden e juntos fizeram declarações conjuntas em defesa dos valores democráticos, tão ameaçados nos dois países em tempos recentes.

Como contrapartida, algumas semanas depois, Lula fez uma ambiciosa visita à China a fim de aprofundar as relações comerciais e tentar liderar um esforço de paz para a guerra na Ucrânia, iniciativa que, infelizmente, não angariou resultados claros, algo que reflete não algum descompasso da política externa em curso, mas sim as dificuldades estruturais do mundo de hoje.

De fato, reproduzir as grandes conquistas da chamada política externa altiva e ativa de 20 anos atrás, quando o Brasil atingiu um patamar sem precedentes de relevância no cenário internacional, será muito difícil. O mundo mudou, e o Brasil também mudou — em geral, em um sentido negativo.

A democracia liberal enfrenta sua maior crise desde o fim da Segunda Guerra, e o autoritarismo, e mesmo o fantasma do (Neo)fascismo, se apresentam como alternativas viáveis. A polarização política e ideológica ecoa padrões rígidos da Guerra Fria e a desigualdade doméstica e entre países retoma padrões de mais de um século atrás.

Mas é exatamente nesse mundo rigidamente fragmentado, crescentemente violento e onde o isolacionismo, a xenofobia e a promessa de maiores níveis de protecionismo e isolacionismo são crescentes, onde um maior ativismo do Brasil é cada vez mais necessário. Afinal, o Brasil é possivelmente um dos poucos, senão talvez mesmo o único país que possa , dada sua trajetória histórica, peso econômico e tradição diplomática, servir como interlocutor privilegiado entre os países da esfera Ocidental, da América Latina, do bloco Russo-Asiático e dos chamados países do Sul.

De fato, a importância do Brasil e de Lula para o mundo só aumenta na medida em que se torna bastante possível a volta de Trump à chefia dos Estados Unidos, ao passo em que a extrema direita avança na Europa e o autoritarismo se aprofunda na Rússia, Índia e China.

Assim como Lula não tentou tensionar as relações com parceiros tradicionais, como os EUA e Europa, durante seus dois primeiros mandatos, quando o que de fato fez foi ampliar o relacionamento com novos países e blocos de países, dado que seus relacionamentos históricos não estavam ameaçados; hoje o que Lula tem buscado fazer é ampliar as vozes dentro do cenário internacional de forma que abordagens multilaterais possam ser revitalizadas e expandidas.

Essa postura não contradiz em nada com o que o Brasil tem buscado fazer desde pelo menos o início dos anos 1960, quando a estratégia não era a de confrontar países mais fortes, mas sim a de aglutinar forças e parcerias a fim de que o Brasil pudesse ter maior peso dentro das esferas e lógicas de deliberação dos poderes vigentes e, assim, buscar mesmo, quando possível, redemocratizá-las a fim de que pudessem se tornar, de fato, espaços multilaterais representativos e legítimos em escala efetivamente global.

Claro que reconheço as muitas dificuldades de se tentar manter tal abordagem no contexto muito mais tensionado do mundo de hoje. Como disse anteriormente, nada disso será fácil. Mas se Lula conseguiu tanto na era Bush, quando era ainda mais forte a narrativa única do alinhamento necessário de todos os países dentro da chamada Guerra ao Terror, talvez dentro de um tabuleiro global muito mais complexo, com vários atores disputando pela hegemonia, um país com o perfil do Brasil possa conseguir barganhar ganhos ainda maiores dentro das muitas disputas em curso.

Sim, o mundo é muito mais complexo e os riscos são certamente maiores nos dias de hoje. Mas também temos um cenário que permite maiores triangulações, desde que o Brasil, seus dirigentes, mídia e comentaristas internacionais de plantão sejam menos dogmáticos e ideológicos em suas análises e tomadas de decisão.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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