Maria Rita Kehl

Opinião

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O engodo da pacificação

Ao propagandear a sua autoanistia, Bolsonaro fala em “pacificar” o País, mas nossa história prova: não existe paz sem Justiça

O engodo da pacificação
O engodo da pacificação
Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo
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Uma das melhores designações dadas ao golpe de 1964 figura no título do documentário de Camilo Tavares: O Dia Que Durou 21 Anos. Esse período se inicia com a deposição de um governo legítimo e progressista, liderado por João Goulart, e se encerra – pero no mucho – em 1985, com a eleição do primeiro presidente civil após duas décadas de regime militar.

No crepúsculo desse sombrio hiato de 21 anos, o Brasil caminhava para uma democracia, mas até certo ponto. Exilados voltaram ao País, recebidos com imenso carinho. Os presidentes voltaram a ser eleitos, e não escolhidos por juntas militares. Mas a mudança em curso estava longe de ser progressista. Eleito pelo voto indireto de um colégio eleitoral, Tancredo Neves morreu antes de assumir. O primeiro presidente pós-ditadura foi o vice José Sarney, tão à direita quanto os militares aos quais se alinhou.

Na verdade, esse processo de redemocratização se inicia alguns anos antes, com a Lei da Anistia de 1979, fruto do crescente desgaste dos governos militares junto à sociedade. Dentre outras coisas, uma corrosão causada por mortes e desaparecimentos de opositores do regime. O clamor social por uma anistia aos presos políticos surtiu efeito. Só que, ao contrário do ocorrido em outros países latino-americanos vitimados por ditaduras, o Brasil reinaugurou sua experiência democrática “não com um estrondo, mas com um suspiro”, como no verso de T. S. Eliot. Juntamente com os exilados e presos políticos contemplados com a anistia, também foram perdoados os agentes do Estado envolvidos em graves violações aos direitos humanos.

À época, essa anistia bilateral, a beneficiar tanto as vítimas quanto os algozes da ditadura, foi apresentada como uma solução para “pacificar” o País. É a mesmíssima desculpa usada por Jair Bolsonaro para defender, hoje, a impunidade dos cidadãos envolvidos na fracassada tentativa de golpe no 8 de Janeiro. Ao devastar as sedes dos Três Poderes em Brasília, a horda bolsonarista buscava criar uma situação de caos político e social, capaz de justificar uma “intervenção militar”, implorada por semanas nas portas de quartéis. Desta vez sem o apoio dos EUA e da mídia, a cúpula das Forças Armadas não atendeu ao chamado e a quartelada não se concretizou.

Até o fim do ano passado, a Procuradoria-Geral da República denunciou mais de 1,4 mil suspeitos de atuar como executores, incitadores ou financiadores dos atos golpistas. Quando a investigação da Polícia Federal começou a se aproximar dos mentores da trama, incluindo o próprio Bolsonaro, o capitão tirou da cartola a proposta de uma nova anistia.

Bolsonaro aposta na histórica impunidade aos que atentam contra a democracia e o Estado de Direito no Brasil. Vergonhosamente, o país do “jeitinho” foi o único do continente que, logo após o fim de sua ditadura, não instituiu uma Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos por agentes estatais contra parte da população brasileira. Prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e ocultação de corpos das vítimas foram práticas naturalizadas nos governos militares, mas ficaram impunes. Os defensores da anistia “ampla, geral e irrestrita” de então justificavam que havia dois lados em guerra. O Exército teria apenas cumprido a função que seu “lado” lhe designara. Só que os fardados dispunham de todo aparato do Estado para dizimar o “outro lado” – civis que resistiam a um regime autoritário.

Durante a vigência da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – instituída apenas em 2011 pela presidenta Dilma Rousseff –, autoridades simpáticas aos militares e cidadãos de direita se agarraram à equivocada “teoria dos dois lados” para defender a manutenção da anistia para torturadores. Eram dois lados em luta, um deles haveria de perder, diziam. O argumento é falacioso e de má-fé. De um lado, havia um Exército com todo seu arsenal. De outro, jovens idealistas que, mesmo sem armas pesadas nem treinamento de guerra, imaginavam ser capazes de derrubar a ditadura.

Entre esses jovens idealistas, figurava a própria presidenta Dilma. Presa nas masmorras da ditadura, aguentou a tortura sem delatar ninguém. Ao chegar ao poder, conseguiu aprovar junto ao Congresso a criação da CNV, da qual tive a honra de participar. Até hoje estou convicta de que o impeachment injusto sofrido por ela teve muito mais a ver com a criação da Comissão da Verdade do que com as ridículas “pedaladas fiscais”.

Uma das recomendações do colegiado foi justamente uma revisão da Lei da Anistia – ou pelo menos da equivocada interpretação de que ela deveria continuar beneficiando agentes do Estado que torturaram e mataram dissidentes políticos na ditadura. Tudo o que o Brasil não precisa, hoje, é de outro perdão aos que desprezam a democracia e os direitos humanos. •

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O engodo da pacificação’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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