Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O embate histórico entre um heroico pintagol e um carcará sanguinolento

O sangue espirrado na parede, o pintagol no cantinho da gaiola ofegante, parecia estar se despedindo da gente

Gaiola (Foto: Alberto Villas)
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Foi logo no primeiro dia, assim que colocamos os pés pela primeira vez no planalto central do país, nas primeiras horas da manhã, que o carcará atacou a gaiola estropiada do pintagol, arrancando-lhe a asa esquerda.

Ponte quebrada no meio do caminho, levamos quatro dias entre Minas Gerais e aquela que seria a nova capital do Brasil. O pintagol sentiu o baque com aquele calor dentro da Rural, mesmo com todos os vidros abertos. Era um bafo quente que vinha do sertão e as árvores nanicas e retorcidas não ajudavam em nada para uma sombra.

Ele vinha balançando, tentando se equilibrar no poleiro e quando o meu pai parava para tomar um café doce no copo, comer um pão na chapa, lavar o rosto da poeira, ele beliscava a água na lata de sardinha e comia alguns grãos de alpiste. Acostumado a cantar de dar gosto, ele só piava estrada afora, rumo ao planalto central.

Era tarde da noite quando chegamos ao acampamento no bairro do Cruzeiro, onde iriamos morar enquanto Brasília ia ficando pronta. Minha mãe fez uma macarronada com salsicha em lata e molho de tomate que matou a fome dos cinco filhos, pai e mãe e o cachorro Tupi.

Antes do sol raiar, acordamos com a algazarra do redemoinho lá fora no horizonte, levantando um pó vermelho de assustar. Os papagaios faziam um barulho ao redor, intenso, alimentando seus filhotes nos ocos dos troncos que eu cismei ser carnaúba ou baobá.

Quando chegamos na varanda é que vimos a cena. O sangue espirrado na parede, o pintagol no cantinho da gaiola ofegante, parecia estar se despedindo da gente. Olhava assustado, ensanguentado, piscando os olhos com lerdeza e dificuldade.

Isso é obra de carcará, disse um candango que morava ao lado, ao ver nossa aflição.

É um bicho que avoa que nem avião, é um pássaro malvado, tem o bico volteado que nem gavião, vim a saber alguns anos depois quando Maria Bethânia cantou os versos de João do Vale.

Os carcarás sobrevoavam a região, sempre em voos perfeitos e à procura de comida. Não imaginávamos que um pobre passarinho dentro de uma gaiola seria isca para eles, ávidos de carne e sangue. Mas nosso pintagol foi bravo, lutou como pode, e o que aquele bicho de bico torto que nem avião conseguiu levar foi apenas a asinha esquerda dele.

Penas por todos os lados, tiramos o bichinho da gaiola e com um estojo de primeiros socorros daqueles da Johnson & Johnson, conseguimos estancar o sangue com uma gaze, secar a ferida com Anaseptil e fazer com que ele caminhasse até a lata de sardinha e engolisse algumas gotas de água fresca.

Antes, limpamos a gaiola, tiramos qualquer vestígio de vermelho, jogamos álcool, enxugarmos e colocamos os poleiros na altura de um dedo pra ver se ele conseguia subir. E nada.

Com o tempo, o ferimento cicatrizou, as penugens foram crescendo e encobrindo a parte mutilada. O pintagol agora já saltitava, comia as sementes da metade do jiló e a gema de ovo cozido que colocávamos no chão da gaiola. Comia e piava.

Imitando a voz do velho Lua, cantávamos Assum Preto pro passarinho se consolar. Tudo em vorta é só beleza/Sol de abril e a mata em frô/Mas assum preto, cego dos óio/Num vendo a luz, ai, canta de dor/Tarvez por ignorança/Ou mardade das pió/Furaro os óio do assum preto/Pra ele assim, ai, cantá mió.

Não exigíamos mais dele o canto, apenas a respiração, o resto que lhe faltava viver. Os carcarás continuaram sobrevoando o cerrado, seguiam o rumo de Planaltina e voltavam. Ficaram ali no céu durante todos os meses que moramos no Cruzeiro, naquele acampamento de casas de madeira, rodeados de cactos e pés anões de caju.

Brasília foi ficando pronta, ganhou asfalto e luz, muitos monumentos que davam orgulho ao meu pai. O verde aos poucos foi cobrindo a terra vermelha e seca, terra que deu uma alergia horrível nos pés da minha mãe.

Um dia, voltamos pra nossa Belo Horizonte e o pintagol retornou conosco. Na viagem, já não era mais aquele passarinho arisco da ida, pulando de poleiro em poleiro, fazendo estripulias, agarrando suas unhas no bambu da gaiola. Ficava no cantinho, às vezes escorregava num equilíbrio tosco de fazer pena.

Viveu ainda alguns anos aquela vida subtraída, com um pouco de alegria e canto. Sim, o ar ainda puro da cidade rodeada de montanhas parece ter feito bem a ele. Voltou a cantar aos poucos, baixinho e meio roco. Sempre no chão, sem a asa esquerda, procurando sempre cantá mió.

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