Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

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O dólar, aríete de demolição

O perigo de ignorar o privilégio exorbitante dos Estados Unidos

Foto: Arquivo/Agência Brasil
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Em sua coluna no Financial Times, Ruchir Sharma denuncia os danos causados à economia global pela valorização do dólar. Ele diz que a moeda americana se tornou o “aríete de demolição, subindo muito mais do que se esperaria com base em fundamentos, incluindo a diferença entre as taxas de juro nos EUA e no resto do mundo. Sua extraordinária alta é impulsionada por investidores que pensam que o dólar é o único paraíso e especuladores apostando que ele continuará subindo”.

Os queixumes de Ruchir Sharma carregam minha memória para o início da década dos 90. Nesse momento, a visão dominante embutida nos modelos teóricos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial garantia: a abertura e a desregulamentação financeiras promoveriam a suavização das flutuações da renda e do consumo nos países da periferia.

Advertiram alguns céticos e incréus que os fatos produzidos pela finança global em livre movimentação funcionariam ao revés e invariavelmente levariam os deficitários e detentores de moedas não conversíveis a desfechos desagradáveis.

Foram persistentes as lições dos “fatos”. Nos últimos 40 anos, as crises se multiplicaram nas chamadas economias emergentes. Do México à Argentina, passando pela Ásia e pela Rússia – sem esquecer o Brasil – as economias balançaram, açoitadas por desvalorizações cambiais dolorosas impostas pelas valorizações da moeda americana.

Tantos e tais foram os acidentes cambiais que nem mesmo os defensores da abertura das contas de capital resistiram à precariedade de suas sabedorias. O FMI publicou tempos atrás um relatório que trata dos riscos construídos pelo excessivo e imprudente endividamento em moeda estrangeira das empresas nas ditas economias emergentes.

Depois de recomendar rigorosas medidas macroprudenciais destinadas a controlar o endividamento em moeda estrangeira de bancos e empresas, o relatório dispara: “As economias emergentes devem estar preparadas para graves desequilíbrios financeiros e patrimoniais das empresas, inclusive para uma sucessão de falências na posteridade de uma elevação das taxas de juro nas economias avançadas”.

A situação agrava-se nas economias enfiadas na recessão aguda, com queda do faturamento, juros elevados, crédito em retração e, naturalmente, colapso da capacidade de pagamento dos devedores. Informam os especialistas em “fatos” desagradáveis.

Os “fatos” da finança em livre movimentação funcionam na contramão das teimosas versões da macroeconomia aberta que defendem os “mercados financeiros eficientes”. Em sua empáfia, os Napoleões de Hospício asseguram: o que está acontecendo não pode acontecer.

É ilusório supor que o regime de câmbio flutuante numa situação de estresse vai resistir à reversão do fluxo de capitais. Ainda pior é imaginar que uma ulterior elevação da Selic ou a utilização das reservas no mercado do dólar “pronto” vai aplacar os apetites por moeda forte dos mercados cambiais.

Na Conferência de Bretton Woods, ao recomendar a adoção do sistema de compensações internacionais para ajustar os déficits e superávits entre as nações, Keynes almejou eliminar o papel desestabilizador da função reserva de valor do dinheiro mundial nos desequilíbrios globais.

O sistema monetário internacional de nossos dias está fundado no “privilégio exorbitante” do país gestor do dinheiro universal. As turbulências cambiais nos países de moeda não conversível, com suas graves consequências fiscais e monetárias domésticas, exibem a assimetria fundamental do sistema monetário-financeiro global. A função de reserva de valor do dólar é um perigoso agente da “fuga para a liquidez”. Isso, como é sabido, submete as demais moedas nacionais às políticas monetárias dos Estados Unidos, tal como observamos agora às vésperas de todas as reuniões do ­Federal Open Market ­Committee, o FOMC.

Mesmo em ambiente internacional de taxas de juro negativas nos países avançados, a trajetória da dívida pública e privada­

dos emergentes está submetida, em primeiríssima instância, aos prêmios de risco exigidos pelos investidores para manter em suas carteiras os ativos denominados na moeda “emergente” não conversível.

Em tais condições, as benesses da facilitação quantitativa se dissipam nos diferenciais de juros reais, sempre mais elevados nos emergentes, impondo aos orçamentos uma carga absurda de despesa com juros, sem efeitos sobre a inflação disparada por um choque de custos. Mas esses “fatos” estruturais e convencionais são jogados para debaixo das tapeçarias que adornam os salões em que circulam as versões Mickey Mouse dos modelos de especulação nos mercados futuros de juros e de câmbio. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O dólar, aríete de demolição”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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