Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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O direito de respirar

O julgamento, pelo STF, da resolução que proíbe a adição de sabor e aroma a derivados do tabaco é um marco na proteção à saúde dos brasileiros

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Há momentos em que o destino de um país se mede pela coragem de suas instituições. A retomada do julgamento da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 14/2012 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é um desses momentos.

Sob a aparência de um debate jurídico, o que está em jogo é o poder de o Estado brasileiro proteger sua população – especialmente crianças e jovens – de um inimigo que há mais de um século enriquece à custa da doença e da morte: a indústria do tabaco.

A RDC 14/2012 proíbe a adição de sabores e aromas em produtos derivados do tabaco. É uma medida baseada em evidências científicas sólidas e em um processo regulatório exemplar, conduzido pela Anvisa com transparência, participação social e respaldo técnico.

Esses aditivos – mentol, baunilha e chocolate, entre outros – não são meros ingredientes. Eles são iscas químicas que tornam o primeiro cigarro mais agradável, mascaram o gosto amargo do tabaco e ampliam o poder viciante da nicotina. São, portanto, ferramentas de sedução e dependência.

A Carta Aberta das entidades de saúde, assinada por dezenas de instituições da sociedade civil, universidades, associações médicas e organizações de controle do tabaco, é clara: “A RDC 14/2012 é uma norma essencial para a prevenção do tabagismo e para proteger as novas gerações da manipulação das indústrias de produtos fumígenos”.

O texto lembra que, ao longo de quase 13 anos, a Anvisa vem sendo atacada judicialmente por um setor que tenta impedir o avanço de políticas públicas legítimas. A ofensiva objetiva, em última instância, fragilizar o poder regulatório do Estado e abrir brechas para a desregulação sanitária em outras áreas.

O ministro Dias Toffoli, relator do caso, reconheceu o óbvio: a Anvisa tem competência legal e constitucional para editar normas técnicas que visam proteger a saúde. Seu voto pela validade da resolução é coerente com o papel das agências reguladoras e com os princípios do SUS.

Três ministros já votaram contra, e o julgamento foi suspenso após o pedido de vista do ministro Cristiano Zanin. São 13 anos de litígio e postergação, enquanto milhares de jovens continuam sendo atraídos por produtos que os empurram para uma vida de dependência e risco.

O tabagismo segue a ser a principal causa de morte evitável no Brasil – é responsável por mais de 173 mil óbitos anuais – e tem impactos econômicos bilionários no SUS e na sociedade. Por trás de cada tragada há uma engrenagem de marketing, manipulação e negação. O apelo aos “sabores” é a mais cruel das estratégias, pois disfarça o veneno sob o véu da liberdade.

A Carta Aberta adverte: “A decisão do STF será um marco para o futuro da saúde pública no País. A eventual revogação da RDC 14/2012 representará um retrocesso inaceitável, colocando em risco políticas exitosas de controle do tabaco reconhecidas internacionalmente”. E é verdade.

O Brasil tornou-se referência mundial na redução do tabagismo, graças à combinação de informação, regulação e políticas de proteção. Ceder agora seria rasgar um capítulo exemplar da história sanitária brasileira.

A Constituição é inequívoca, tratando a saúde como direito de todos e dever do Estado. A Anvisa, ao agir para reduzir riscos e proteger a população, cumpre esse dever. Enfraquecer sua autoridade técnica e sua autonomia institucional seria um passo trágico na direção oposta – a da captura regulatória e submissão da ciência ao interesse privado.

Mais do que uma resolução, o STF tem diante de si o espelho da República. Defender a Anvisa é defender o SUS, a ciência e a democracia e reconhecer que a liberdade econômica não pode sobrepor-se ao direito à vida e à saúde. O Brasil precisa reafirmar que a regulação sanitária é instrumento de soberania, não de tutela corporativa.

Quando o STF confirmar a constitucionalidade da RDC 14/2012, estará não apenas validando uma norma, mas dizendo ao País – e ao mundo – que a vida vale mais que o lucro; que nenhuma estratégia publicitária pode ser mais forte do que o direito de respirar; e que o futuro de crianças e jovens não será negociado nos bastidores da indústria da morte.

A decisão está nas mãos da Corte. O apelo é simples e urgente: que o Supremo defenda o que é também supremo – a vida. •

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O direito de respirar’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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