O direito à crítica

Dois stories de 15 segundos fizeram emergir, de dentro do nosso campo de esquerda, uma chocante profusão de ódio

Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)

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“Vivemos um momento profundamente crítico. Por isso, privemo-nos de reflexão”. A frase imaginada deveria parecer absurda, mas pequenos acontecimentos e uma postura por parte de pessoas que expressam opiniões em redes sociais têm nos mostrado que não só ela não parece absurda para o senso comum como está se normalizando como panaceia à crítica. Isso é grave.

Na política, a democracia pressupõe um regime de confronto de ideias e de disputa de grupos organizados para gerir, administrar, criar ou transformar assuntos públicos e condutas do Estado em diferentes esferas. Se normalizamos ideias absurdas como a de “evitar a crítica em momentos críticos” compactuamos com o desmonte da democracia, com o autoritarismo e com burocracia.

Não faz muito tempo, dois stories, de 15 segundos cada um, feitos por mim, tornaram-se motivo de debate, estardalhaço e uma profusão de ódio que gerou bastante choque – assim como importantes declarações de solidariedade – dentro do campo de esquerda.

Os stories teciam brevíssimo comentário sobre a insatisfação com a chapa Lula-Alckmin e sobre perigosas ausências no pronunciamento de Lula para o lançamento oficial da chapa que figura como favorita na eleição presidencial. Eles, além disso, apontavam o tom idealista e conciliatório com setores e agentes políticos responsáveis pelo caos em que vivemos.

O texto falava sobre a demanda, neste cenário, por postura crítica, capacidade de organização e combate à normalização dos absurdos presentes nas contradições do nosso tempo. A declaração, que não deveria causar nenhum espanto (uma comunicadora comunista votará e apoiará a construção de candidaturas mais à esquerda), gerou descabida comoção.

Mais que isso, fez emergir, de dentro do nosso campo de esquerda, um discurso de ódio que muito se assemelha às táticas e técnicas usadas pelo campo bolsonarista para deslegitimar, perseguir, atacar e massacrar quem critica o “mito” deles. Lula expressou, textualmente, que buscaria fazer uma campanha focada em amor e união, sem “tempo a perder odiando e brigando”, mas parte do ­eleitorado/militância­­ está desalinhada da proposta.


A crítica, enquanto campo de disputa, se faz ainda mais necessária em momentos de encerramento de horizontes de luta e rebaixamento de demandas e programas. Neste ano de construção e divulgação de uma campanha para vencer Bolsonaro nas urnas, o programa da esquerda não pode gerir o cenário de horror que o bolsonarismo lega ao País, mas revertê-lo.

Não há como organizar um governo “para todos” quando os interesses são antagônicos. Não há como construir um governo que atenda, simultaneamente, aos interesses do agronegócio e dos povos indígenas; dos latifundiários e da reforma agrária; da especulação imobiliária e das lutas por habitação e moradia.

Os movimentos sociais que constroem e disputam a candidatura Lula, bem como seu eleitorado em primeiro turno, têm o papel de demandar um comprometimento programático declarado com o que há de mais grave e urgente no nosso país: reforma agrária, demarcação de terras indígenas, segurança pública, combate à desindustrialização e à destruição dos avanços sociais ocorridos nos seis anos de políticas neoliberais de Temer e Bolsonaro.

Nossa tarefa histórica e nossa conjuntura não são simples e exigem que também os debates se complexifiquem. Não podemos engrossar um movimento de voto acrítico e nos iludir com a “democracia burguesa”, que não verá problema em tomar da classe trabalhadora suas conquistas sociais quando suas taxas de lucro forem ameaçadas.

Precisamos nos indagar sobre o que uma frente tão ampla será capaz de produzir. Existe um compromisso de classe que nos impede de fazer vista grossa para aquilo que não pode nem deve ser tolerado.

Neste pleito eleitoral, para que nossos projetos avancem e nossa classe se organize como proponente e demandante de políticas públicas – e não apenas como “eleitora de representantes” –, precisamos construir um poder popular e reconfigurar os quadros legislativos e executivos. O desejo democrático radical não é o de que a classe trabalhadora esteja no orçamento, mas que ela seja a proponente, gestora e organizadora da política.

Que possamos avançar no debate sem silenciar ou brutalizar as vozes críticas. Que possamos avançar como campo contra um modo de vida que nos destrói e mata o planeta. Que não chamemos de camarada ou companheiro quem, no passado, organizou as forças do Estado contra nós. Superar o bolsonarismo passa por emancipar nossa classe, para que ela nunca mais compactue com o fascismo. Seguimos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O direito à crítica”

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1 comentário

PAULO SERGIO CORDEIRO SANTOS 21 de maio de 2022 05h53
De fato a colunista Rita Vom Hunty foi alvo de incompreensões de muitos militantes de esquerda, principalmente petistas ao exprimir seu descontentamento na chapa Lula- Alckmin e na provável frente ampla que Lula, o PT e as esquerdas propõem para derrotar Bolsonaro em primeiro turno. Ocorre que a colunista, talvez açodada pelo idealismo não tenha percebido que o ex governador Alckmin já saiu do PSDB e entrou no PSB, e assim evoluiu demonstrando consciência de mudança, mesmo que por via de discurso, talvez envernizada, mas consistente em sua fala. Quanto a conciliar agronegócio, especulação imobiliária, latifúndio misturado com a causa indígena, reforma agrária, distribuição de renda, diminuição da desigualdade, creio que esse é um compromisso do presidente Lula, desde sempre, e que quem está no caput da chapa é Lula e o arco de alianças progressistas de esquerda. Uma frente ampla hoje se insinua no Brasil nos mesmos moldes em que Churchil, Roosevelt e Stalin no pacto contra o nazifascismo da segunda guerra mundial, guardadas as devidas proporções. O excesso retórico e manifestações assimétricas, também fazem parte da democracia, e a resposta neste artigo foi altamente compreensível e esclarecedora no sentido de expor as suas razões quando se colocou em não votar em Lula e seu amplo leque de alianças. Infelizmente vivemos momentos políticos e sociais críticos, no país e no mundo. E devemos, homens e mulheres razoáveis expor nossas ideias com critérios de razoabilidade e coerência. O direito a defesa e ao contraditório são princípios caros ao Direito de cada um expor suas razões de modo a esclarecer o que não foi obscurecido e o lado controvertido ser lapidado e transformado na síntese do pensamento dialético de modo a mostrar quem somos, o que queremos e qual sociedade e país queremos ter no presente e futuro. Pela sabedoria política do ex presidente Lula, podemos concluir que ele fez a escolha certa do ex governador Alckmin, todavia, pelo que conhecemos do ex presidente, podemos ter a certeza que jamais abrirá mão dos seus princípios de retomar os pilares que foram abandonados pelo golpismo de 2016, revogar as reformas que sacrificaram a classe trabalhadora e direitos sociais que foram subtraídos, além de procurar seguir adiante com os ditames constitucionais de construir uma sociedade justa, fraterna e menos desigual do que se encontra nos dias de hoje. Cabe não somente ao presidente Lula, mas a cada um de nós, elegermos o maior número de parlamentares e governadores progressistas para se desfazer todas as maldades desde o golpe de 2016 a fim de retomarmos o país justo e soberano que sempre sonhamos.

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

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