Rita von Hunty

[email protected]

Drag queen intepretada pelo professor Guilherme Terreri

Opinião

O direito à crítica

Dois stories de 15 segundos fizeram emergir, de dentro do nosso campo de esquerda, uma chocante profusão de ódio

Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)
Apoie Siga-nos no

“Vivemos um momento profundamente crítico. Por isso, privemo-nos de reflexão”. A frase imaginada deveria parecer absurda, mas pequenos acontecimentos e uma postura por parte de pessoas que expressam opiniões em redes sociais têm nos mostrado que não só ela não parece absurda para o senso comum como está se normalizando como panaceia à crítica. Isso é grave.

Na política, a democracia pressupõe um regime de confronto de ideias e de disputa de grupos organizados para gerir, administrar, criar ou transformar assuntos públicos e condutas do Estado em diferentes esferas. Se normalizamos ideias absurdas como a de “evitar a crítica em momentos críticos” compactuamos com o desmonte da democracia, com o autoritarismo e com burocracia.

Não faz muito tempo, dois stories, de 15 segundos cada um, feitos por mim, tornaram-se motivo de debate, estardalhaço e uma profusão de ódio que gerou bastante choque – assim como importantes declarações de solidariedade – dentro do campo de esquerda.

Os stories teciam brevíssimo comentário sobre a insatisfação com a chapa Lula-Alckmin e sobre perigosas ausências no pronunciamento de Lula para o lançamento oficial da chapa que figura como favorita na eleição presidencial. Eles, além disso, apontavam o tom idealista e conciliatório com setores e agentes políticos responsáveis pelo caos em que vivemos.

O texto falava sobre a demanda, neste cenário, por postura crítica, capacidade de organização e combate à normalização dos absurdos presentes nas contradições do nosso tempo. A declaração, que não deveria causar nenhum espanto (uma comunicadora comunista votará e apoiará a construção de candidaturas mais à esquerda), gerou descabida comoção.

Mais que isso, fez emergir, de dentro do nosso campo de esquerda, um discurso de ódio que muito se assemelha às táticas e técnicas usadas pelo campo bolsonarista para deslegitimar, perseguir, atacar e massacrar quem critica o “mito” deles. Lula expressou, textualmente, que buscaria fazer uma campanha focada em amor e união, sem “tempo a perder odiando e brigando”, mas parte do ­eleitorado/militância­­ está desalinhada da proposta.

A crítica, enquanto campo de disputa, se faz ainda mais necessária em momentos de encerramento de horizontes de luta e rebaixamento de demandas e programas. Neste ano de construção e divulgação de uma campanha para vencer Bolsonaro nas urnas, o programa da esquerda não pode gerir o cenário de horror que o bolsonarismo lega ao País, mas revertê-lo.

Não há como organizar um governo “para todos” quando os interesses são antagônicos. Não há como construir um governo que atenda, simultaneamente, aos interesses do agronegócio e dos povos indígenas; dos latifundiários e da reforma agrária; da especulação imobiliária e das lutas por habitação e moradia.

Os movimentos sociais que constroem e disputam a candidatura Lula, bem como seu eleitorado em primeiro turno, têm o papel de demandar um comprometimento programático declarado com o que há de mais grave e urgente no nosso país: reforma agrária, demarcação de terras indígenas, segurança pública, combate à desindustrialização e à destruição dos avanços sociais ocorridos nos seis anos de políticas neoliberais de Temer e Bolsonaro.

Nossa tarefa histórica e nossa conjuntura não são simples e exigem que também os debates se complexifiquem. Não podemos engrossar um movimento de voto acrítico e nos iludir com a “democracia burguesa”, que não verá problema em tomar da classe trabalhadora suas conquistas sociais quando suas taxas de lucro forem ameaçadas.

Precisamos nos indagar sobre o que uma frente tão ampla será capaz de produzir. Existe um compromisso de classe que nos impede de fazer vista grossa para aquilo que não pode nem deve ser tolerado.

Neste pleito eleitoral, para que nossos projetos avancem e nossa classe se organize como proponente e demandante de políticas públicas – e não apenas como “eleitora de representantes” –, precisamos construir um poder popular e reconfigurar os quadros legislativos e executivos. O desejo democrático radical não é o de que a classe trabalhadora esteja no orçamento, mas que ela seja a proponente, gestora e organizadora da política.

Que possamos avançar no debate sem silenciar ou brutalizar as vozes críticas. Que possamos avançar como campo contra um modo de vida que nos destrói e mata o planeta. Que não chamemos de camarada ou companheiro quem, no passado, organizou as forças do Estado contra nós. Superar o bolsonarismo passa por emancipar nossa classe, para que ela nunca mais compactue com o fascismo. Seguimos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O direito à crítica”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar