Opinião

O diálogo impossível

Tanto com quem vive no limbo quanto com quem só pensa no golpe pessoal a bem da sua fortuna

O diálogo impossível
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Antes de o presidente Jair Bolsonaro submeter-se à operação para a retirada da bolsa de colostomia, o seu vice, general Mourão, recorreu ao Altíssimo. Pediu proteção do “guerreiro presidente” ao “Pai Todo-Poderoso, Senhor de todos os exércitos”. Pensei nas mais altas esferas do empíreo, anjos, arcanjos, dominações, e todos os demais invocados por Rilke nas suas Elegias de Duíno, a comporem o exército de Deus.

Permito-me duvidar das intenções do general, algo assim que o associaria ao poeta austríaco, embora também não imagine a quais exércitos se refira. Não será, espero, o exército comandado pelo Duque de Caxias, que provocou o genocídio do povo paraguaio, ou o afegão, que resiste até hoje. E nem se fale dos guerrilheiros vietnamitas que humilharam o exército do general Westmoreland, conquanto este prometesse “bombardeá-los de volta à Idade da Pedra”.

Nem sempre Deus atende às preces deste ou daquele. Os cruzados enfrentavam os adversários muçulmanos aos gritos de “Deus quer”. Esqueciam, ao que parece, que o Nosso Senhor em árabe se chama Allah. Muitos morreram no campo de batalha na crença de que ali estavam para conquistar Jerusalém e garantir o culto católico ao Santo Sepulcro.

Para os grandes da Terra, o verdadeiro objetivo era abrir as rotas das especiarias. A proteção divina tem suas limitações, sem contar que quem cuida do Universo inteiro de quando em quando pode se descuidar em relação a um planeta que no cenário infinito pesa menos que um grão de areia no Saara.

Não creio, porém, que o Pai Todo-Poderoso se incomode com as ações militares que semeiam guerras em todos os cantos em nome de interesses das potências econômicas e políticas, mascarados pela retórica da hipocrisia. Não creio, aliás excluo, que Deus tenha alguma preocupação com o destino do Brasil, e tampouco a tenham os fados gregos. Estes estão acostumados a assistir à tragicomédia humana sem o mais pálido propósito de interferir.

Donde, somos exatamente o que merecemos ser, inclusive por causa dos erros de uma dita esquerda que nunca foi capaz de levar o povo à consciência da cidadania. Há dignas exceções, representadas por João Pedro Stedile e Guilherme Boulos, assim como Lula presidente moveu-se com notáveis acertos no campo social e no internacional, conforme CartaCapital sempre reconheceu. Pois é, exceções.

Certo está Jean Willys, que se vai em busca de ar menos poluído.

A Europa ainda é o centro do mundo e lá, ao contrário do que se dá no País, o diálogo inteligente entre semelhantes é perfeitamente possível, não menos do que ler jornais ou assistir a programas de televisão com posições ideológicas diversas, enquanto regras elementares de civilidade ficaram enraizadas nos hábitos da população.

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Ali há pensadores e poetas resistentes ao ódio da extrema-direita e um Estado de Bem-Estar Social que funciona desde o Pós-Guerra. As livrarias estão apinhadas e, se você tem de se tratar, o hospital paga-lhe até o táxi. A escola pública é de longe a melhor não somente por ser de graça, as Supremas Cortes atuam em silêncio e com eficácia mantêm a democracia de pé, e os exércitos submetem-se ao poder civil.

Aqui as coisas tomam caminhos opostos e não é árduo explicar por quê. O que mais me impressiona é a impossibilidade de diálogo, tanto com quem vive no limbo, eventualmente fanatizado pelos cobradores de dízimo, quanto com exemplares da minoria abastada e remediada, voltada com exclusividade a cogitar do golpe pessoal a bem da sua fortuna.

Aqui, os militares estão no governo, o STF legaliza a ilegalidade e o inquisidor que condenou sem provas um ex-presidente da República é ministro da Justiça. Aqui, a educação do povo conta com a contribuição fatal da internet e dos celulares.

O derradeiro capítulo envolve Lula, impedido de forma canhestra de comparecer ao velório do irmão falecido. Creio que o Bom Deus das marcelinas que me ensinaram o bê-á-bá condenaria mais esta agressão cometida contra o ex-presidente. Sublinho que o general Mourão defendeu como “questão humanitária” a presença de Lula no velório. Enigmático vice…

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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