Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O dia em que a Terra parou

Da última década pra cá, ninguém imaginava as várias coisas que iriam desaparecer

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Há 10 anos, tinha certeza de que o mundo tinha acabado. Aquele mundo dos anos 1950, 1960, quando nasci e cresci, tinha caído, desabado. Ele já não existia mais, tinha virado pó. Estou falando do papel de seda azul que envolve a maçã, da Zebrinha do Fantástico, do Crush, do baralho do Mico Preto, da Revista do Rádio.

Enumerei uma a uma todas as coisas que, com o passar dos anos, foram sumindo do mapa. O sabonete Benjoim Glicerinado, o papel carbono, o elefantinho da Shell, a gotinha da Esso, as pílulas de vida do Doutor Ross, as frases nos parachoques dos caminhões.

Em 2010, quando a Editora Globo colocou o meu livro O Mundo Acabou em todas as livrarias do Brasil, tudo estava mudando. O telefone fixo tinha os dias contados, o cheque estava desaparecendo, o papel carbono ninguém usava, os jogadores do Canto do Rio, do Madureira e do Metalusina nem treinavam mais.

Eu sentia saudade da colcha de chenile, do brim Coringa, da enciclopédia Conhecer, do Banco da Lavoura, do cigarrinho de chocolate da Pan, do sabão Rinso, do Amigo da Onça, do envelope verde amarelo. Até mesmo do botão de horizontal da televisão e do cheiro que saia da bomba de Flit eu sentia uma certa saudade.

Entrávamos de cabeça no futuro. O Google substituía a Larousse, o caixa eletrônico substituía os caixas de carne e osso dos bancos, a digital do dedo indicador substituía o porteiro do prédio, o Melitta ocupava o lugar do coador de pano, a apostila digital aposentava a cartilha, o chocolate Ferrero Rocher tomava o lugar daquele doce de abóbora em formato de coração e o frango congelado matava o frango vivo comprado no Mercado Central.

O CD já havia ocupado o lugar do vinil, a secretária eletrônica havia demitido a secretária bilíngue, o micro-ondas estava no lugar do forninho e criança nenhuma acreditava mais no homem do saco, no bicho-papão e no bom e velho Papai Noel.

 

O cabo de vassoura de madeira deu lugar ao cabo de plástico, a carrocinha de cachorro não passava mais, nem mesmo o leiteiro e o padeiro. O prato Colorex foi substituído pelos pratos floridos da Tok Stok e todos perguntavam onde foi parar o Pente Flamengo, a fotonovela, o missal, o café com Suita, os maiôs Catalina, o Jeca-Tatu, o programa Papai Sabe Tudo.

Livro lançado, comecei a ser bombardeado por e-mails que vinham de todos os cantos porque cartas já não adiantavam mais. Você se esqueceu da Cera Parquetina, do carrinho de rolimã, do sabonete Vale Quanto Pesa, do babydoll, do catecismo do Carlos Zéfiro e da máquina IBM de bolinha, diziam eles.

Naquele 2010, ninguém ainda imaginava a invasão dos Ubers, dos entregadores do iFood e do Rappi, do sucesso do rap, do Waze, do Netflix, do #ForaTemer, do #EleNão, do #LulaLivre e agora do #BolsonaroAcabou. Ninguém imaginava que as mulheres iam ficar todas com as sobrancelhas iguais, nem que Anitta teria 30 milhões de seguidores nas redes sociais. Ninguém nunca tinha ouvido falar ainda em coronavírus.

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. E agora, José? O abraço desmanchou, o beijo não pode mais, o aperto de mão está proibido, sair às ruas nem pensar, não podemos mais tossir nem espirrar. Não podemos por a mão na boca, entrar no coletivo, ir no campo de futebol, ver um show do Caetano, não podemos mais ver a exposição de fotos do Lennon no MIS, comer pipoca no Cinemark, nem ver na TV a revelação de que Danilo é o Domenico.

Só nos resta colocar na vitrola um velho disco de vinil e ouvir Marisa Monte cantando “Beija Eu”, as irmãs Galvão cantando “Beijinho Doce”, Cascatinha e Inhana cantando “Encosta sua cabecinha no seu ombro e chora” e Gilberto Gil cantando “Aquele Abraço”.

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