Ivanisa Teitelroit Martins

Opinião

assine e leia

O desmonte da seguridade social

Os programas de distribuição de renda estão aquém das demandas por políticas integradas e articuladas

O desmonte da seguridade social
O desmonte da seguridade social
À mercê. Defasado, eleitoreiro e mal planejado, o Auxílio Brasil deixa de fora milhares de famílias necessitadas - Imagem: Luis Alvarenga/Getty Images/AFP
Apoie Siga-nos no

Por ter colaborado na redação de cinco artigos da Constituição na função de assessora do relator do capítulo da Ordem Social na Constituinte, entre eles a descentralização federativa e participativa e a sistematização e financiamento do sistema de seguridade social, que adotava uma visão sistêmica das políticas públicas no combate à desigualdade social, me permito fazer algumas apreciações sobre o processo de implantação dos programas sociais desde a década de 1990. Em um momento de participação social, em que a sociedade se fazia representar em fóruns, conselhos nacionais, estaduais, municipais paritários, deliberativos e consultivos com o propósito de redemocratização do País e de consolidação permanente da democracia após 21 anos de ditadura, aprovou-se o sistema da seguridade social, financeiramente sustentável, por meio de uma lógica de contribuição social em vez de uma lógica puramente fiscal. Constituiu-se um fundo de financiamento destinado aos programas sociais composto de fontes que tinham flexibilidade suficiente para manter um sistema de contribuição equânime, que privilegiava a igualdade progressiva de benefícios entre trabalhadores urbanos e rurais, de perspectiva inclusiva e de caráter redistributivo, que previa, inclusive, a redução ao mínimo de programas de assistência social. Esse sistema agregava três políticas públicas de forma integrada: previdência social, saúde e assistência social. Foram inúmeras reuniões interministeriais que mantinham diálogo permanente com os setores progressistas da academia, principalmente com a Unicamp, para desenvolver as diretrizes da implantação das políticas públicas previstas na Constituição.

Formulou-se um pacto federativo que consolidou a democracia participativa, sem a perda de competências da democracia representativa no intuito de fortalecer o controle social e a descentralização. Formaram-se redes de conselhos em todo o território nacional, com a participação de governadores, prefeitos e secretários de desenvolvimento social em número de igualdade aos representantes da sociedade civil, redes organizadas com o propósito de transferir ações e programas sociais ao poder municipal. Adotavam-se os índices de desenvolvimento humano (IDH), mapeando o conjunto de municípios em função do número de habitantes e das vocações econômicas regionais, constituindo “rankings” de municípios para transferência de recursos públicos que compensassem as desigualdades nacionais, além de prestar assessoria às cidades na formulação dos planos diretores municipais.

É preciso um esforço coletivo para enfrentar a expansão de práticas radicalmente liberais

Ao ser convidada pelo governo Lula a participar da consolidação de um sistema federativo público, participativo e descentralizado que avançasse na concepção social-desenvolvimentista, confiei que, apesar dos avanços e recuos na implantação dos sistemas de políticas públicas, devido a interferências da agenda neoliberal, seria finalmente viável. No entanto, diante da crise econômica de 2008, hegemonizada por países dominantes, agentes públicos pouco afeitos ao desenvolvimentismo social adotaram reformas que transferiram recursos de contribuições sociais para o Tesouro para amortizar o impacto da crise, o que causou um retrocesso na concepção sistêmica de políticas públicas, terminando por adotar preferencialmente uma estratégia focalizada em programas de inclusão social que se limitam até hoje a uma transferência de renda, muito aquém das demandas sociais por políticas públicas integradas, articuladas entre as entidades federadas, por meio dos fundos constitucionais. À época, as decisões foram tomadas por setores enquistados no próprio governo que teorizavam a partir do capital humano, típico da agenda neoliberal, que adota pressupostos que confiam equivocadamente na superação do conflito capital-trabalho, sendo o trabalho e a produção determinantes para o desenvolvimento social. Houve uma inflexão ao social-liberalismo, que não passa de um neoliberalismo palatável socialmente, ao se alinhar à identificação das causas da pobreza sem levar em consideração uma concepção condizente com os propósitos de redistribuição de renda e riqueza.

Houve o desmonte do sistema integrado e participativo, devido a uma série de ingerências de ordem político-ideológica e à formação reativa da sociedade, composta pelas elites financeira, empresarial, inclusive midiática, que constituiu um instituto para restaurar e fundamentar a concepção do liberalismo em 2005 – o Instituto Millenium. Como não foi possível adotar a reforma política no primeiro mandato do governo Lula, houve conse­quências, ao longo dos últimos anos, nefastas para o Estado Democrático de Direito, com a eleição de um representante radical de direita que ainda defende o período da ditadura. As manifestações de 11 de agosto são uma demonstração expressiva de contestação não somente à agenda neoliberal ou liberal conservadora, mas em defesa das bases do Estado de Direito do País, em que milhões de brasileiros se manifestaram por eleições diretas e influíram na promulgação da Constituição em 1988.

Para que a história não se repita nem como farsa nem como tragédia é crucial um esforço coletivo para enfrentarmos as crises contemporâneas do capitalismo e a expansão de práticas políticas radicalmente liberais e conservadoras presentes há algum tempo no sistema político internacional. •


*Cientista social e gestora pública federal que participou da implantação dos principais programas sociais no Brasil.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O desmonte da seguridade social “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo