O day after é apenas um dia após o outro

'Não dá pra perceber nenhuma mudança de ontem para hoje na cidade que elegeu o novo prefeito, o mesmo de sempre', escreve Alberto Villas

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

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Quando deu cinco, cinco e pouco, o dia começou a clarear. Ele percebia através do fio de luminosidade entre um edifício e outro, da janela lateral do apartamento onde mora. O sol chegou a ensaiar os primeiros raios, mas logo em seguida vieram as tenebrosas nuvens de chumbo e cobriram a maior cidade da América do Sul.

 

 

A mais rica, a mais desigual, a mais efervescente cidade amanheceu e já se viam os peões comendo pão na chapa e tomando café com leite na Padaria Pão de Ouro. Uns comiam mineirinho, um lanche mais reforçado porque hoje era dia da sexta laje do Residencial Toulouse Lautrec.

No ponto do ônibus, sonolentos passageiros quase dormiam com o silêncio da cidade, normalmente barulhenta e agitada a partir das sete da manhã. Abriam os olhos, consertavam as máscaras do pescoço para o nariz quando ouviam o ronco do motor do ônibus que os levariam até o Paraíso.


As poucas portas de ferro de um comércio que sobreviveu dois mil e vinte, começam a ranger, a serem abertas. Oficinas mecânicas, óticas, lojas de material de construção, farmácias e lotes transformados em estacionamentos.

Pessoas começavam a andar pelas calçadas, algumas carregando suas sacolas de plástico, outros mochilas nas costas ou saquinhos com a marmita do dia. Os primeiros cachorros surgiam vindos dos prédios. Galgos, buldogues, lavradores, beagles, goldens retriever e vira-latas.

Pombos surgiram ciscando e catando cada farelo de pão, enquanto pardais espertos passavam o bico neles e fugiam apressados.

Debaixo do viaduto Presidente João Goulart, uma fumaça saia de uma panela que se equilibrava entre duas pedras recheadas com gravetos estalando. Hora do café. O pão dormido estava dentro de uma bandeja de plástico encardida pelo uso. Havia bananas e biscoitos Maria, distribuídos por organizações não governamentais na noite anterior.

Os moradores de rua enrolavam suas mantas e iam colocando dentro de um carrinho de supermercado todo estropiado, faltando uma roda. Uma criança brincava de ninar com um velho Babysauro surgido sabe Deus de onde.

Os CRVs saiam das garagens dos prédios, um após o outro. Davam um tchau para os seguranças vestidos de preto e arrancavam, sumiam no infinito da rua que vai até o número 2.136.

Olhando assim, apenas observando, não dá pra perceber nenhuma mudança de ontem para hoje na cidade que elegeu no domingo o novo prefeito, o mesmo de sempre.

Na televisão, rodou a vinheta. Vai começar o Bom Dia, Brasil.

 

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