

Opinião
O crepúsculo e a aurora de Antonio Candido
Do ocaso da vida pública à redescoberta familiar de um legado, dois filmes revelam facetas íntimas e complementares de um dos maiores intelectuais brasileiros


Camadas de sentido se empilham no filme de Eduardo Escorel, Antonio Candido – anotações finais. Na forma, o trabalho é de uma elegância seca e redux, o simples narrar de pensamentos extraordinários, pinçados dos diários redigidos por um homem de inteligência, escrita e sensibilidade política extraordinárias.
Seu conteúdo é também fora da curva: o modo pelo qual o mais longevo representante de uma geração intelectual acima da média colide com as tramas de um Brasil degradado. Com 90 e poucos anos, Candido se encontra aposentado, saído de cena, convertido em escriba de páginas íntimas – mas só ilusoriamente íntimas. Se reclama das pernas e da idade, fala de si inserindo-se no amplo, pondo à tona o posicionamento público que fez sua cabeça e fama.
Em seus registros, aflora o pasmar-se com o que toma conhecimento. Desde seu apartamento, emerge uma incredulidade brutal diante do “celerado” e “diabólico” Eduardo Cunha. Candido assiste ao ocaso de Dilma em vertigem, não apenas por seus vínculos históricos com o PT, mas ao reparar na malta cínica e desqualificada que comanda sua remoção. Confundem-se duas tonturas: a do corpo envelhecido, bambo, e o aturdimento de uma mente moldada por outros tempos. Ele evoca o comentário de Jean Maugüé, lendário professor de Filosofia da USP, quando ainda era jovem: “Há algo de antiquado em você”.
Na velhice desse homem e de um certo Brasil, essa inclinação para o antigo se converte em desajuste expresso. Mas não é um desajuste de manias. É o desajuste de um modo de existir.
Quais, então, as camadas presentes no filme? A velhice e a morte, a dissociação entre corpo e mente. As persistentes desigualdades de uma sociedade pós-escravista que se recusa a corrigir-se. O avanço cavalar da violência como norma da vida social e urbana. A imprensa e o jornal – impresso! – como elo entre biografia e história, ativando no leitor idoso a reflexão e a memória. O amor que não arrefece, que perturba o viúvo, açoda o espírito de quem perdeu, como ausência que se enuncia diariamente.
Tudo nesse filme é diário e crepúsculo. Delicado, porém terrível.
Recentemente, o crítico cinematográfico Carlos Augusto Calil escreveu um artigo agudo comparando essas “anotações finais” ao documentário de Marcelo Machado e Fabiana Werneck, O avô na sala de estar, a prosa leve de Antonio Candido, lançado também agora. Calil tratou as obras como complementares – a serem vistas portanto em conjunto. Concordamos.
Um ponto a ser sublinhado no filme de Machado e Werneck é, a meu ver, a confluência – antiga e antiquada – na história oral de Candido. O material narrado é a esplendorosa concomitância entre a descoberta da Filosofia e o amor de vida toda por sua companheira Gilda, também uma intelectual de envergadura. Esse é o fio que tece tudo ali. Nada é diário, tudo é aurora. Ainda mais porque a escolha profissional se deu por um cândido, mas decidido, embate com o pai, que esperava do filho a Medicina.
Nesse sentido, O avô na sala de estar é um filme transcendente: dissolve a figura do mito e da consagração precoce, revelando um homem de maior tangência, com dramas e encruzilhadas mais universais. Não é um “homem comum”, pois é extraordinariamente culto, mas um homem carregado de graciosidade, anedotas e pequenas máximas ligadas à tradição vernacular da fala corriqueira, da conversa solta – a “conversa de caipira” à qual ele mesmo se dedicou como estudioso e que também reivindica como seu berço.
Assim, é justo o subtítulo “a prosa leve de Antonio Candido”, cuja candura aumenta por ser induzida pela neta, Maria Clara Vergueiro. Essa candura de avô, em crescendo, torna-se, mais uma vez, um material transcendente.
Mas aqui não convém ilusão, tampouco. Essa candura só parece ter lugar porque existe uma espécie de reconhecimento do mais velho quanto ao ponto de vista e os propósitos do mais novo – a neta que estudou Ciências Sociais e, com isso, tornou-se capaz de acessar o legado e a gramática básica por meio da qual pode haver a conversa.
É por isso que, no filme de Machado e Werneck, Candido rejuvenesce: por encontrar, no seio de sua prole, muito mais do que uma fidalguia vazia ou a nobreza estamental de meia-tigela que tanto cultuamos. Ele encontra uma linhagem verdadeira. O entusiasmo do velho é patente e permeado de leveza, pois surge nos diálogos como este (cito de memória):
– Vou usar essa colher, vô.
– Não faça isso.
– Sim, vô. Você tem o seu sistema, mas…
Tal frase, sendo dita para o homem que configurou em nós a ideia de “sistema literário” e cultural, não pode ser ouvida como gratuidade. No momento em que a editora Todavia relança a obra de Candido e sua cultuada Formação da Literatura Brasileira, esse encontro geracional coloca a perspectiva de recuperarmos o debate sobre a formação e a deformação do país.
Esse debate não acabou.
Assim, sob uma forma aparentemente singela ou despretensiosa, o filme de Machado e Werneck é politicamente forte, pois anula ou ignora o luto horrível que paira sobre nossa experiência social recente, ao abrir a perspectiva do elo. O final, na verdade, é uma abertura, configurando-se como um desfecho indeterminado no qual Maria Clara se ergue do sofá para dizer, em reticências:
– Tá bom, vô. Eu vou indo então.
Sim, vamos indo. E usemos, por favor, as colheres que herdamos. Não são poucas aquelas que ainda nos servem, ainda que seja preciso moldá-las a novos “sistemas”.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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