Célia Xakriabá

Primeira indígena eleita deputada federal por Minas Gerais

Opinião

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O cocar toma posse

É o começo da resistência em um Parlamento anti-indígena. Nunca mais sem nós

O cocar toma posse
O cocar toma posse
Celia Xakriabá na Câmara - Foto de Wesley Amaral - Câmara dos Deputados. Foto: Wesley Amaral/Câmara dos Deputados
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São 523 anos de luta, de violência, genocídio e invasões. Esta é a história que não contam sobre os povos indígenas do Brasil. Durante todo esse tempo, apenas dois parlamentares indígenas foram eleitos na história. Se isso não é apagamento ou o que chamo de racismo da ausência, não sei o que é. Em 2023, chegamos com duas mulheres eleitas pela bancada do cocar e tomamos posse do que sempre foi nosso. Entrar no Congresso eleita é reintegrar a posse de um Brasil que é terra indígena.

Entro aqui não com as gravatas do protocolo, mas com a gravata dos nossos ancestrais. As gravatas Xavante, as gravatas Xakriabá e de todos nós. Entro para assinar, não para assassinar direitos. Em um lugar onde muito é dito e pouco se escuta é onde ecoaremos os nossos cantos com o poder do maracá. Tomamos posse sabendo exatamente o que estamos enfrentando. Já estivemos na luta do lado de fora, recebendo balas de borracha. Sabemos o que pensam de nós os homens de paletó. E é exatamente contra esse apagamento que resistiremos.

Chegamos com força, com um novo e ancestral ministério, com um governo que se comprometeu com os nossos povos. Mas chegamos também em um Parlamento que sabemos ser anti-indígena. Nos corredores dessa casa de senhores já se escuta dizer que o presidente quer criar uma Comissão dos Povos Originários. Desmembrá-la da Comissão de Direitos Humanos. A pergunta é: o que querem eles? Nos ludibriar com a luz e o reflexo de um nome bonito e a aparente participação, como faziam os invasores com os espelhos? Ou seria criar mais um espaço para os(as) aliados(as) que vão no oposto do que os nossos movimentos querem?

Representatividade não é apenas se autodeclarar indígena, se pintar ou até mesmo usar um cocar. Representatividade a gente ganha no chão da luta, que sempre foi o nosso maior palco. E qualquer coisa ao contrário disso não reflete a verdadeira luta dos povos indígenas. Entregar uma comissão a qualquer pessoa que defenda o bolsonarismo ou que ignore o genocídio cometido nos últimos quatro anos contra os nossos povos é continuar sendo um Parlamento anti-indígena.

Além disso, as disputas seguem firmes no campo da extrema-direita para seguir passando a boiada e o garimpo. Diante da nossa vontade de propor, mais uma vez, uma frente parlamentar indígena, vemos um deputado aliado ao garimpo e do partido de Jair Bolsonaro tentar usurpar esse espaço e evitar que a nossa luta real seja feita. Não passarão. A hora agora é de barrar a boiada e não chego sozinha. Os meus seguem firmes do lado de fora, onde sempre estiveram fazendo frente aos ataques a nós e ao planeta.

Durante os quatro anos do ecocídio promovido por Bolsonaro e seus aliados do alto escalão, como os recém-eleitos Damares Alves e Ricardo Salles, nós, os povos indígenas, é que fizemos o verdadeiro papel de ministros e ministras do Meio Ambiente. Fomos guardiões do que era possível preservar diante da ânsia daqueles que queriam queimar os nossos biomas e devastar as nossas terras.

Diante de tudo que estamos vendo nos últimos dias com a crise humanitária na Terra Indígena Yanomâmi, e que sabemos que acontece em vários territórios no nosso país, não entregar o que é de direito a quem tem direito é mais um ataque aos povos indígenas. Mais um apagamento. Houve uma tentativa de genocídio bancada pelo Estado brasileiro. Omissão, descaso e vontade política de dizimar um povo. Agora é preciso seguir resistindo pelos nossos. E é isso que faremos no Congresso.

Este foi o combo para a situação que vemos hoje nos territórios indígenas. É um ecocídio programado o que acontece agora com os Yanomâmis e tantos outros povos. A saída é clara: demarcação já. Sempre me pergunto quanto custa a demarcação das terras indígenas para essas pessoas. Mas a real pergunta deveria ser aquela proposta por Davi Yanomâmi: quanto custa a queda do céu?

E a tentativa de nos retirar do protagonismo da nossa própria pauta é a vontade de seguir perpetuando esse ecocídio. Como disse em sua posse a nossa parentíssima ministra Sônia Guajajara, “nunca mais sem nós”. No mesmo ano em que se cria o nosso novo e ancestral ministério, não precisamos de colonizadores criando comissões ou frentes para falar por nós. Este foi o recado da ministra e será também o da bancada do cocar. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O cocar toma posse”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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