Marjorie Marona

Professora de Ciência Política da UNIRIO e pesquisadora do QualiGov - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável.

Opinião

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O chororô de Dallagnol

A acusação de uma perseguição política aos juízes da Lava Jato não resiste aos fatos. No Brasil, é o Poder Judiciário que controla a si mesmo

O chororô de Dallagnol
O chororô de Dallagnol
O deputado cassado Deltan Dallagnol. Foto: Lula Marques/Agência Brasil
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Nos últimos dias, dois episódios sem conexão aparente entre si trouxeram à baila a recorrente discussão acerca dos limites da intervenção judicial e do eventual controle e responsabilização dos magistrados por suas decisões. A disputa que Elon Musk travou com o Supremo Tribunal Federal, pelos ataques diretos proferidos contra o ministro Alexandre de Moraes, rendeu assunto na imprensa nacional e internacional que apontou a suposta “autoridade descomunal” do tribunal sobre a vida dos brasileiros.

Por outro lado, a determinação de afastamento da juíza Gabriela Hardt e de outros três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, decorrente de correição conduzida pelo Conselho Nacional de Justiça, “passa a mensagem de perseguição política a juízes e desembargadores que atuaram na Lava Jato”, segundo o ex-procurador da operação Deltan Dallagnol. Guardadas as discrepâncias entre um e outro caso, pode-se dizer que no primeiro se reclama o controle de que se desdenha no segundo.

O controle sobre o Poder Judiciário (accountability) é assunto polêmico ­vis-à-vis do sagrado princípio da independência judicial que se espraia por todas as instâncias jurisdicionais, mas é ainda mais sensível quando se trata do desempenho do STF, ao qual cabe a guarda da Constituição. À indesejável politização da Justiça se opõe a difícil tarefa de estabelecer-se o adequado escopo à judicialização da política nas democracias contemporâneas, impondo freios ao ativismo judicial – especialmente no Supremo.

No Brasil, o STF – e seus ministros, individualmente – possui altos níveis de independência e poder judicial, o que garante que possa exercer efetiva intervenção em virtualmente todos os aspectos da vida política do País. Esse estado de coisas resulta do desenho constitucional e outros aspectos institucionais, reunidos no Regimento Interno do próprio tribunal, por exemplo, que fixam um amplo rol de garantias aos ministros e um farto pacote de instrumentos judiciais à sua disposição para atuarem de modo tão autônomo quanto eficaz. De outra parte, a dinâmica política nacional reforça o protagonismo judicial se não pelo modo como se encaminham as negociações sobre os membros da Corte, pela frequente mobilização estratégica do STF que os convida a tomar parte dos mais variados aspectos da disputa política (e eleitoral).

O atual estado de coisas que envolve a alegada hipertrofia do poder do Supremo – e de seus ministros individualmente – indaga à própria elite política, portanto. Muitos daqueles que se opõem às decisões mais assertivas de Moraes, outrora estiveram a aplaudir posicionamentos individuais igualmente heterodoxos e equivalentemente politizados de Gilmar Mendes, para ficar com um único exemplo. Entretanto, a mais recente polêmica sobre a decisão de Moraes não é mais do que reflexo de um modelo de governança que não prescinde mais da elite judicial, para o bem e para o mal da democracia brasileira.

Por outro lado, no amplo descampado em que se espraiam todas as instâncias e jurisdições do Poder Judiciário brasileiro, muitas e mais diversas são as formas em que se ergue o controle público sobre a atuação judicial. No Brasil, assim como em cerca de 60% das democracias no mundo, existe um órgão estatal dedicado à regulação do Poder Judiciário: o Conselho Nacional de Justiça. Os variados formatos que os conselhos da magistratura podem assumir revelam, contudo, que se tem, por um lado, potencial para funcionar como instrumento de accountability judicial e, por outro, podem estar a serviço do aprimoramento da gestão da Justiça e mesmo do fortalecimento da independência judicial.

O debate sobre a criação do CNJ apontava, no Brasil, a ­necessidade de instauração de um mecanismo de controle externo do Poder Judiciário, embora os ministros do STF tenham acolhido sua criação como parte de um processo de aprimoramento da governança judiciária e indução de decisões mais uniformes em todas as instâncias, o que reforça, em último caso, a independência judicial. A acusação de Dallagnol, portanto, não sobrevive a um sopro: o CNJ, na melhor das hipóteses, atua como instrumento de controle interno. O próprio afastamento de Hardt acabou revertido no plenário do Conselho, sem análise do mérito. A política não logrou controlar o Judiciário, que controla a si mesmo. •

Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O chororô de Dallagnol’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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