Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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O caso Faustão e o SUS

As filas para transplantes e a resistência das famílias em doar órgãos e tecidos devem-se, sobretudo, ao fato de não tratarmos do tema da morte ao longo da vida

Foto: Divulgação/Band
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Faustão já está em casa. A fase mais difícil e perigosa foi ultrapassada, ainda que sua luta pela vida continue a cada dia. Esse processo só está sendo possível pelo gesto de amor e solidariedade de uma família que, em um momento de profunda dor pela perda de um ente querido, teve a generosa decisão de permitir que outras pessoas pudessem viver, por meio da doação de órgãos.

No caso de uma celebridade como Faustão, não faltaram as “opiniões dos especialistas” que de tudo entendem, sem qualquer compromisso com a verdade.

No meio de tanta desinformação foi possível constatar o quanto o SUS é imprescindível e motivo de orgulho para o País. Temos o maior programa de transplantes públicos do mundo, com serviços hospitalares aptos a coletar órgãos e tecidos, dentro de procedimentos técnicos rigorosos e seguros, regidos por criteriosos preceitos éticos. A rede de transplantadores, espalhados pelo território nacional, ainda concentrada na Região Sudeste, tem sido capaz de salvar milhares de vida todos os anos.

O Sistema Nacional de Transplantes do SUS, coordenado pelo Ministério da Saúde e conduzido em parceria com as secretarias estaduais de Saúde, é mais um exemplo do SUS que dá certo. Somos um país populoso e continental. Conseguimos com sucesso gerenciar filas descentralizadas, em cada estado, que seguem critérios tais como tempo de espera, compatibilidade, prioridade para crianças e casos mais graves.

A existência de milhares de brasileiros nas filas aguardando por um transplante deve-se muito mais a questões culturais. Pouco falamos sobre a inevitabilidade da morte e como queremos que a família se porte no momento que um dia todos iremos enfrentar.

As filas para transplantes e a resistência das famílias em doar órgãos e tecidos, mais do que falta de solidariedade ou de outra dificuldade qualquer, devem-se ao fato de que não tratamos do tema da morte ao longo da vida. Não é, portanto, uma deficiência do sistema de transplantes. O sucesso do paciente Faustão pode ajudar a mudar a atitude da sociedade e ampliar as doações de órgãos.

Mas é preciso tratar de outras duas dimensões relacionadas aos transplantes.

A primeira é o que chamo de “paradoxo do SUS”, que só pode ser explicado pela forma como os “interesses de mercado” se apropriam dos recursos públicos. Sem uma atenção básica disponível para quem mais precisa do SUS, continuaremos a ser o país campeão de transplantes de rins e, paradoxalmente, o que produz doentes renais crônicos mais jovens no mundo, que sofrem em máquinas de hemodiálise enquanto aguardam na fila de transplantes.

Isto porque não somos capazes de diagnosticar de forma precoce e tratar adequadamente nossos hipertensos e diabéticos. Somos vaidosos por liderar as dispendiosas tecnologias, altamente complexas, envolvidas nos transplantes de órgãos e tecidos, mas somos incapazes de proteger os rins de nossos jovens com uma Atenção Primária à Saúde bem-feita.

A segunda dimensão do problema é tão relevante quanto a anterior.

Para que alguém entre na fila de transplantes é preciso que tenha sua doença bem diagnosticada. Aí reside o mais grave problema do SUS: a dificuldade de acesso à atenção especializada. As filas para consultas, exames, cirurgias e procedimentos especializados são imensas e funcionam como um “funil”.

Enquanto isso, os que vivem em municípios ou regiões onde o SUS funciona, e aqueles que têm planos de saúde ou recursos para pagar médicos especialistas e exames complementares, como uma biópsia de fígado, por exemplo, conseguem “fechar” seu diagnóstico e ser incluídos nas filas de transplantes. Alguns, com mais recursos cognitivos e, principalmente, financeiros, aceleram o seu lugar na fila judicializando contra o SUS e os planos de saúde.

A iniquidade de acesso aos recursos de saúde é o maior desafio para a garantia do direito constitucional a ela. Felizmente, o Ministério da Saúde está propondo a nova Política Nacional de Atenção Especializada em Saúde, que estabelece as bases da atenção especializada que deve ser organizada, com ênfase na centralidade na Atenção Primária, na qualificação da regulação do acesso, na regionalização, na saúde digital e na produção da equidade e justiça.

Sem isso, os mais pobres, periféricos, que vivem nas regiões mais necessitadas e desassistidas, seguirão seu curso de adoecimento e desesperança, e muitos continuarão morrendo sem sequer terem chegado à tal fila dos transplantes. •

Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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