

Opinião
O carnaval, quando a estrela era Zé Gilette
‘Era na festa de Momo que ele tinha oportunidade de se divertir de verdade’, escreve Alberto Villas


Zé Gilette era o único gay declarado naquela pudica cidade da Zona da Mata mineira. Muito magro, esguio, cabelo black power, era alvo predileto do preconceito travestido de bom humor, nos tempos em que todos cantavam nega do cabelo duro qual é o pente que te penteia. Tempo em que cantavam também ai, meu Deus, que bom seria/se voltasse a escravidão/eu comprava essa mulata/e prendia no meu coração.
Contavam piadas de português, de judeu, de anão, de gago e principalmente, de preto. Diziam que coisa está preta, a lista era negra e que havia negro de alma branca. Zé Gilette era mulato, num tempo em que ninguém associava a palavra com uma mula. Era um mundo cruel, aparentemente engraçado.
Zé Gilette, ninguém sabia o nome verdadeiro, se animava quando ia chegando janeiro, quando fevereiro pintava e com ele, o carnaval. Era na festa de Momo que ele tinha oportunidade de se divertir de verdade. Confeccionava fantasias com roupas comuns que passavam o ano dependuradas em varais das casinhas dos anos quarenta, cinquenta.
Havia desfile de carnaval pelas ruas de pedra da cidade, com escolas de samba mambembe e tudo mais. A cidade parava para ver os blocos passarem e, num deles, lá vinha Zé Gilette na maior empolgação. Era, sem sombra de dúvida, o mais animado da festa. Pulava, se divertia, divertia todo mundo à beira da calçada jogando confetes e serpentinas, borrifando todos com lança-perfume.
As roupas que ele usava eram uma atração. Sunguinhas de crochê feitas por ele mesmo, muito antes de Fernando Gabeira. Bustiês tacheados de miçangas coloridas, tamancos escandalosos pintados cada um de uma cor. Ninguém sabia onde ele conseguia aqueles óculos enormes, cor de rosa, iguais ao do Zé Bonitinho.
Zé Gilette chegava na quarta-feira de cinzas um bagaço, uns cinco quilos mais magro dos 50 quilos que pesava normalmente. Dormia o dia inteiro para recompor as energias e, na quinta-feira, bater ponto na fábrica de tecidos.
Ele ganhou esse apelido no início dos anos 60. Um dia, cansado de ser motivo de chacota, cravou vinte e cinco lâminas de Gilette num cabo de vassoura e saia na madrugada com aquela arma na mão.
Incapaz de matar uma muriçoca, Zé Gilette nunca atacou ninguém, mas ganhou um apelido que entrou para a história de Cataguases.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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