

Opinião
O cárcere sacia a fome
A liberdade deve incluir o poder de influenciar a existência


“Na prisão é menos ruim. Como sou tranquilo e mais velho, o pessoal me respeitava. Eu tinha até amigos lá. Já na rua é solitário demais. Acordo sem saber se vou comer ou se estarei vivo no fim do dia.” Assim falou à reportagem do UOL um morador de rua em Belo Horizonte.
Essa bordoada (des)humanitária atingiu minha testa no momento em que me entregava à releitura do livro Markets and Authorities: Global Finance and Human Choice, organizado pelo economista italiano, recentemente falecido, Marcello de Cecco.
O livro tem o propósito de investigar as relações entre os trejeitos dos mercados financeiros globalizados e a capacidade de resposta das autoridades políticas. Trata, portanto, da convivência, quase nunca pacífica, entre o mundo da finança – constituído pelas instituições, regras e procedimentos relacionados com a avaliação da riqueza – e a política democrática, entendida como o âmbito por excelência da escolha humana, da busca da liberdade.
Os artigos reunidos por De Cecco, em sua maioria, concluem que a vida humana sofre duros percalços em grande parte dos Estados Nacionais da periferia, aqueles capturados nas armadilhas do capitalismo globalizado. Para este grupo de países, é crescente a separação entre o poder e a política: o verdadeiro poder, a finança globalizada, determina as possibilidades de opções de vida dos cidadãos. Graças à mobilidade cada vez mais desembaraçada, a finança impõe suas razões às políticas nacionais e à vida dos cidadãos.
Os Estados Unidos se valem da supremacia do dólar para forçar a liberalização dos sistemas financeiros de outros países. Durante os últimos 40 anos, o Federal Reserve manejou com grande agilidade a sua política monetária, convertendo-a numa máquina de sucção de liquidez e de capitais para sustentar sua economia.
A reação americana ao colapso de 2008 comprovou a eficácia e o poder dessa forma de articulação financeira, na medida em que propiciou uma espetacular expansão do balanço do FED, sem maiores riscos de sublevação inflacionária. Esse modo assimétrico de funcionamento da economia capitalista pouco se coaduna com as visões panglossianas da globalização.
“Não há alternativa” proclamam os adeptos do neoliberalismo. Sobre este pano de fundo, Margareth Thatcher foi capaz de anunciar a morte da sociedade e o triunfo do indivíduo. É duvidoso que o indivíduo projetado pela razão iluminista e seus desdobramentos tenha, de fato, triunfado. Nos países em que os sistemas de proteção social são parciais ou estão em franca regressão, as ameaças à vida assumem formas assustadoras, tais como a busca da prisão para matar a fome.
Os critérios da ação política democrática e libertadora não se aplicam à agenda dos mercados em que circula e é avaliada a riqueza mobiliária global. Os agentes e os procedimentos não são racionais nem irracionais, simplesmente cumprem os desígnios de sua natureza, sempre dilacerada entre a “ganância infecciosa” e o colapso da histamina.
A despeito de seu poderio financeiro, Tio Sam não reuniu forças para impedir as desventuras dos menos favorecidos quando a empresa que os empregava decide, sem aviso, mudar o negócio para outra região ou iniciar uma nova rodada de “racionalização” através do enxugamento de despesas, redução da força de trabalho, corte de gastos administrativos, venda ou fechamento de unidades não lucrativas. Menos ainda podem fazer os indivíduos para evitar a desvalorização de suas qualificações arduamente conquistadas ou para enfrentar o desaparecimento de suas funções.
O discurso econômico em voga pretende explicar ao cidadão afetado que é inteiramente fora de propósito a ideia de controlar as causas destes golpes do destino. As erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões das bolsas de valores ou as misteriosas evoluções dos preços dos ativos e das moedas são capazes de destruir suas condições de vida. Mas o consenso dominante garante que, se não for assim, sua vida pode piorar ainda mais. A formação deste consenso é, em si mesmo, um método eficaz de bloquear o imaginário social, numa comprovação dolorosa de que as instituições sociais, criaturas da história da ação humana coletiva, transfiguram-se em forças “naturais”, num processo objetivado e hostil aos anseios de liberdade de homens e mulheres.
A boa sociedade deve tornar livres os seus integrantes, não apenas livres de um ponto de vista negativo – no sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade –, mas positivamente livres, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria liberdade. Isso significa primordialmente adquirir o poder de influenciar as condições da própria existência e não ser tangido por forças que é incapaz de controlar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O cárcere sacia a fome”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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