Rosane Borges

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Jornalista, pós-doutorada em ciências da comunicação, professora colaboradora do grupo de pesquisa Estética e Vanguarda (ECA-USP), integrante do grupo de pesquisa Teorias e práticas feministas (Unicamp/Usp), conselheira de honra do grupo Reinventando a educação. Autora de diversos livros, entre eles: Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016).

Opinião

O Brasil sem Brasil: emblema da tragédia do Museu Nacional

Ao testemunharmos seu fim, damo-nos conta de que, com a história do país, cada um de nós também se foi

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A tragédia que se abateu sobre o Museu Nacional, a instituição científica mais antiga do Brasil, foi a peça que estava faltando para dar sentido à engrenagem de destruição do país da qual somos, simultaneamente, ferramentas e operadores (in)voluntários.


A agenda neoliberal impôs-se como uma nova forma de governamentalidade normativa, que estende a lógica do capital ao mundo inteiro, instalando a pós-democracia ou desdemocracia, nas palavras dos especialistas no assunto, Pierre Dardot e Christian Laval.

Com a balada altissonante do neoliberalismo, retorna-se ao capitalismo em seu estado bruto, em sua vida nua; destrói-se e confisca-se direitos adquiridos (relembremos o que o STF fez com a CLT, abrindo as porteiras para a terceirização indiscriminada); hasteia-se a bandeira da terra arrasada para que todos saibamos que não há mais saída, restando-nos a triste constatação de que vivemos (e viveremos) por nossa própria conta.

Para quem ainda não tinha entendido a morfologia da destruição à brasileira, a anedótica pergunta “Quer que eu desenhe?” mostrou sua face. E o desenho foi pintado, ou melhor, filmado em nossas telas ao vivo e em cores de fogo, convertendo-nos em testemunhas oculares, telespectadores desesperados,  céticos em relação ao que víamos.

 

A carbonização do Museu Nacional desponta como um emblema real e simbólico do que a regressão neoliberal representa. Responsável por abrigar parte significativa do nosso patrimônio científico, histórico e artístico (em torno de 23 milhões de peças lá estavam abrigadas), o Museu vinha agonizando já algum tempo, emitindo sinais de que (sobre)vivia numa atmosfera de deterioração que pressagiava um iminente colapso.

Visitei a instituição em abril deste ano e, na qualidade de leiga nos temas de preservação e segurança, percebi que o sólido edifício de 200 anos emitia massivas demonstrações de que não suportaria mais tamanho descaso.

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Sabemos que, nas nossas plagas, o asfixiamento da educação e da cultura não é obra exclusiva dos desmandos do governo de plantão. Sabemos, todavia, que o sucateamento dessas áreas ganhou aceno oficial com a PEC 95, que congelou os gastos públicos por vinte anos e impôs sucessivas reduções das verbas para áreas como educação, saúde e assistência social (esta famigerada PEC não equilibrou, nem assim fará, as contas públicas, cuja situação só piorou nos dois últimos anos. Ela vem servindo para um fim pedagógico: bloquear o futuro do país). O emparedamento letal da vida coletiva só ganha em espessura e profundidade.

Já foram alvejados pela PEC 95 a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o CNPq, vários projetos científicos estratégicos para o desenvolvimento do país, recursos para universidades públicas federais,…

O líquido amniótico no qual a destruição do museu se desenvolveu a passos largos é o mesmo que envolve os outros setores da educação. Diversos programas de apoio à museologia federal nos últimos dois anos foram interrompidos e descontinuados. Sessenta porcento dos recursos advindos do Ministério da Educação e da UFRJ, a quem cabia a gestão do museu, foram ceifados. Entre os programas cortados, estava o de prevenção de riscos.

Epistemicídios e guerra: duas faces de uma mesma moeda

Com assustadora frequência, somos notificados das investidas do Estado Islâmico nas quais constam a destruição de monumentos e acervos bibliográficos em Mossul, maior cidade ao norte do Iraque. A organização declara guerra aos inimigos e considera que a morte cultural e epistemológica é uma estratégia basilar para a vitória no campo de batalha. O parâmetro, reprovável e abominável, é o da guerra, do aniquilamento, da morte do outro.

Circula mundialmente a frase segundo a qual “guerra contra as pedras, os livros e as bibliotecas são sempre prelúdios de genocídio”, o que parece mover os ânimos da organização jihadista islamita. Nomeando o que tem ser nomeado, o que vimos, entre inertes e revoltados na noite de 2 de setembro de 2018, aqui no Brasil, não foi uma notícia típica do Oriente Médio, mas a concretização do epistemicídio (morte do conhecimento) em seu estágio mais primitivo e violento.

É preciso, para efeitos analíticos, que concedamos ao termo guerra, que vem cintilando no nosso horizonte plúmbeo, uma chave explicativa para essa ordem de coisas. Mas guerra contra quem?

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Guerra do Brasil contra o Brasil. Um país que, pelas propostas de (des)governo em curso, subscreve um descompromisso consigo mesmo.

Neste país, que desobriga a si próprio, queimou-se o quinto maior acervo do mundo; o fóssil de 12 mil anos de Luzia – descoberta que refez todas as pesquisas sobre ocupação das Américas; queimou-se um dos maiores acervos afro-ameríndios dos mundo; murais de Pompeia; o documento de assinatura da Lei Áurea; o sarcófago de Sha Amum Em Su, um dos únicos no mundo que nunca foram abertos; queimou-se o acervo de botânica Bertha Lutz; o maior dinossauro brasileiro já montado com peças quase todas originais; alguns fósseis de plantas já extintas;  queimou-se o maior acervo de meteoritos da América Latina; o trono do rei Adandozan, do reino africano de Daomé, datado do século XVIII; o prédio onde foi assinada a independência do Brasil; queimou-se duas bibliotecas; o pergaminho datado do século XI com manuscritos em grego sobre os quatro Evangelhos, o exemplar mais antigo da Biblioteca Nacional e da América Latina;  queimou-se a Bíblia de Mogúncia, de 1462, primeira obra impressa a conter informações como data, lugar de impressão e os nomes dos impressores; a crônica de Nuremberg, de 1493, considerado o livro mais ilustrado do século XV; a primeira edição de “Os Lusíadas”, de 1572; queimou-se o exemplar completo da famosa Encyclopédie Française, uma das obras de referência para a Revolução Francesa; o primeiro jornal impresso do mundo, datado de 1601… queimou-se… queimou-se… queimou-se o Brasil.

A outra face neoliberal

Na trilha de Dardot e Laval, o neoliberalismo não se constitui num sistema normativo voltado apenas à destruição. É também uma forma de governamentalidade que constrói novas modalidades de práticas de dominação. Comprimindo as sociedades como um nó de força, o viés neoliberal inibe a ação coletiva,  constrói novos modos de subjetivação e racionalidade e generaliza a concorrência, sagrando a velha frase “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Quer nos parecer que esta expressão foi reatualizada pela população de Roraima (vale lembrar, oriundos das franjas pobres das várias regiões do país), pelos habitantes de boa parte da Europa e dos EUA, responsáveis por chancelar a ascensão do surto xenófobo e nacionalista.

Assistir à destruição do Museu Nacional em poucas horas provocou efeitos cataclísmicos em cada um de nós. Ao testemunharmos o seu fim, damo-nos conta de que, com a história do país, cada um de nós também se foi. Ao tomarmos ciência de que a morte da nossa primeira instituição científica é fruto de uma lógica normativa, nos vimos também carentes de mantos capazes de nos proteger das adversidades de uma vida insegura, da sociedade de risco.  Talvez esteja aí uma das explicações pelas quais nos refugiamos nas bolhas digitais.

O pensador italiano Giorgio Agamben esboçou uma linda metáfora para o mundo contemporâneo que parece captar o que se passou ontem na Quinta da Boa Vista: “o dorso do contemporâneo está fraturado e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura”.

Já mencionei outra vezes que toda fratura requer reabilitação, sem a qual tudo se atrofia, se desfaz e se esfarela. Uma vez que parte significativa da fratura do Museu não possui conserto, a moral da ideologia neoliberal procura nos convencer que está tudo dominado pela ação mórbida do incêndio que carbonizou as nossas esperanças.

Serão, no entanto, das cinzas que recolheremos os insumos para o cultivo de novas formas de organização política, onde a existência e suas múltiplas formas importam mais do que os preceitos de um capitalismo absurdamente anti-vida.

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