Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

O Brasil punirá apenas os soldados rasos da extrema-direita?

O precedente estadunidense não deixa dúvidas: os invasores do Capitólio estão sendo investigados. Centenas deles já estão presos, alguns com penas severas, de até dez anos

Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadem a sede do Congresso Nacional do Brasil em Brasília (Foto: EVARISTO SA / AFP)
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Nos últimos dias, circularam vídeos de acampamentos remanescentes dos auto-proclamados patriotas sendo desfeitos em várias cidades do Brasil.

Em alguns casos, o esvaziamento foi voluntário, por decepção ou resignação de que nada seria feito por Bolsonaro ou pelas Forças Armadas para impedir a posse do presidente Lula. Em outros, as forças policiais e militares têm tentado conduzir o processo, de forma amigável ou quase fraternal, como é de costume no trato com a extrema direita.

Muitos patriotas têm, contudo, reagido de forma hostil, agredindo jornalistas, servidores municipais e qualquer um que eles classifiquem como inimigos. Alguns deles podem vir a ter problemas com a lei, como é o caso de alguns dos manifestantes que bloquearam estradas e queimaram veículos em Brasília. Quando isso ocorre, elas se mostram surpresas, como se a sua auto-atribuída identidade de “cidadão de bem” (que eles sempre fazem questão de vocalizar) lhes resguardasse o direito de fazer o que bem entendem. Como se a frente dos quartéis fosse um enclave de soberania paralela onde as Forças Armadas garantiriam sua liberdade de lutar contra uma suposta ditadura da toga e ameaça comunista. 

A questão é que de fato é isso que essas pessoas foram levadas a pensar ao longo dos últimos meses. A internet que eles habitam, hoje totalmente separada da esfera pública convencional, sempre lhes devolveu uma imagem de que eles são a única versão autêntica do povo brasileiro. Mas não apenas isso: há correntes anônimas que circulam nos grupos de aplicativos com comandos específicos, que vemos se manifestar quando as multidões online na internet se transpõem em multidões off-line nas ruas. Algumas delas, que circularam quando Bolsonaro finalmente pediu o desbloqueio das estradas, insistiam que os patriotas deveriam migrar para a frente dos quartéis para esperar pacificamente a intervenção militar, pois lá estariam protegidos. E eles de fato o fizeram.

Outro gênero de corrente bastante comum orientava os seguidores a não mencionarem o nome de Bolsonaro em palavras de ordem e cartazes nas manifestações de rua. As justificativas variavam entre a necessidade de o “povo” se colocar como protagonista, pressionando-o a agir, à possibilidade do ex-presidente ser preso caso ele tentasse uma medida mais direta. E deu resultado: de fato ficou realçada, nos acampamentos e protestos, uma relação mais direta entre o auto-proclamado povo e o que eles acreditam ser um “poder moderador” acima dos três poderes, as Forças Armadas. 

É digno de nota que esse tipo de comando tenha se proliferado durante o longo e incomum período de silêncio de Jair Bolsonaro após o resultado eleitoral. Apenas coincidência? Em sua última live em 30 de dezembro, o ex-presidente alegou ter ficado em silêncio para não ter suas falas distorcidas pela imprensa. E desde quando ele se importou com isso? Mais provável é que Bolsonaro tenha feito o que sempre fez, especialmente durante a pandemia da COVID-19: se resguardar contra responsabilização por tudo aquilo que ele incita, sugere, induz, mas nunca executa pessoalmente. 

Não podemos descartar que esse tipo de corrente anônima faça parte de uma tática camuflada, movida pelos “tocadores de gado” do bolsonarismo, visando blindar o ex-presidente de responsabilização por eventuais ações violentas dos seus seguidores no período pós-eleitoral. O precedente estadunidense que ele tem disponível não deixa dúvidas: os invasores do Capitólio – de seguidores de QAnon desavisados a grupos extremistas organizados como os Proud Boys – estão sendo investigados. Centenas deles já estão presos, alguns com penas severas, de até dez anos. 

Além disso, a comissão legislativa que investigou a invasão (uma espécie de CPI) recomendou, pela primeira vez na história, o indiciamento de Donald Trump e de alguns de seus aliados mais próximos por diversos crimes, inclusive o de insurreição. Na sessão que apresentou o relatório, um dos congressistas afirmou que “não somos um sistema de justiça que prende apenas os soldados rasos”. É possível que o ex-presidente se torne inelegível e impedido de disputar as próximas eleições, em 2024.

O Brasil é um país de grandes desigualdades, onde as elites sempre tiveram tratamento diferenciado pela lei. Seremos, mais uma vez, um país que condena apenas os soldados rasos?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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