Rômulo Paes de Sousa

Tereza Campello

Opinião

O Brasil precisa reorganizar a sua política de proteção social

As iniciativas de Bolsonaro são instrumentais, voltadas para o retorno eleitoral

Ampliar e modernizar a rede de assistência social é indispensável - Imagem: Raimundo Paccó/AFP
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Nos últimos dois anos, duas grandes crises têm afetado a vida dos mais pobres. O brutal impacto econômico da Covid-19 e o já evidente efeito da invasão da Rússia à Ucrânia sobre o acesso aos alimentos e combustíveis indicam como o Brasil carece de diretrizes claras de proteção social.

A pandemia nos revelou um governo errático e pedestre na abordagem dos principais problemas sociais advindos da crise planetária provocada pelo novo coronavírus. Em 2020, o substantivo e necessário volume de recursos investido para mitigar os efeitos da crise, em especial o Auxílio Emergencial, não foi vinculado à adesão às medidas básicas de prevenção da doença.

Em uma narrativa tão insistente como descolada do consenso acadêmico, o presidente incentivou o desrespeito às medidas de restrição de mobilidade, constituiu-se como a referência dos que recusam as máscaras de proteção, incentivou o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes e desestimulou o uso de vacinas, sobretudo entre crianças de 6 a 11 anos.

O Brasil afundou-se com muitos casos, muitas internações e um absurdo número de mortes evitáveis por ­Covid-19. Em 2021, mesmo com a bem-sucedida campanha de vacinação levada a cabo pelo SUS, o governo federal realizou trapalhadas diversas na aquisição de vacinas, na comunicação contraditória, na frágil governança e no desprezo pela associação da vacina com outras medidas de prevenção.

Bolsonaro nunca teve uma política de proteção social. Suas iniciativas para o setor são claramente instrumentais, voltadas para a obtenção de retorno eleitoral. Na Previdência, sua gestão será marcada pelo favorecimento aos militares. Na Saúde, sua política se notabilizou pelo desfinanciamento, momentaneamente interrompido pelas demandas da pandemia. Neste ano de eleições, é na assistência social que o governo busca de forma improvisada, sem sustentabilidade fiscal, pavimentar a sua continuidade no governo.

O conflito armado no Leste Europeu provoca uma crise na provisão de ­commodities para os mercados de todo o mundo. Os dois países diretamente envolvidos, seja pela invasão (Ucrânia), seja pela retaliação provocada pelo Ocidente (Rússia), ficam totalmente ou parcialmente impedidos de fornecer produtos agrícolas, minerais e derivados do petróleo. Nações emergentes, como o Brasil, veem seus impactos na mesa e nas bombas de combustível. Enquanto Bolsonaro insulta a Petrobras, os pobres sofrem com a alta inflação.

As iniciativas de Bolsonaro são instrumentais, voltadas para o retorno eleitoral

Não existem Estados modernos sem crises. Contudo, há grandes diferenças no tempo e no espaço sobre a competência que os governos possuem para lidar com elas. No Brasil, nos saímos melhor no enfrentamento da crise financeira global de 2008 e no enfrentamento da pandemia do H1N1, em 2009. Pelo fato de dispor de políticas robustas, um modelo de proteção organizado e respostas em sintonia com o conhecimento científico acumulado, o País foi capaz de restituir os níveis de bem-estar anteriores à crise e de avançar na melhora das condições de vida dos mais vulneráveis.

Desde a Constituição de 1988, a proteção social no Brasil vinha sedimentando a organização de um sistema de políticas públicas abrangente, articulado e integrado às melhores práticas do planeta. O governo Bolsonaro interrompe essa trajetória, reduzindo a proteção social a uma implementação desconexa – e monetizada – de ações que tendem a ser pouco inclusivas e lançar os mais pobres na incerteza de um modelo de políticas públicas sem continuidade nem sustentabilidade. Para os mais pobres, são igualmente assustadoras as agruras do presente e as incertezas do futuro.

As principais crises do século XXI nos têm trazido ensinamentos e revelado os nossos grandes déficits. O Brasil precisa reorganizar a sua política de proteção social, ajustando-a às demandas do nosso tempo. A primeira grande transformação provocada pela pandemia é o uso intensivo de tecnologia no dia a dia nas esferas social e privada. Na proteção social, o uso intensivo de tecnologia pode aumentar: 1. O nosso conhecimento sobre os usuários dos bens e dos serviços providos. 2. A comunicação com e entre gestores e usuários. 3. A transparência. Dessa forma, teríamos políticas mais ajustadas às necessidades dos usuários em seus contextos locais e para prevenir a opacidade sobre a execução das políticas públicas que hoje vigoram sob a forma de apagão de dados dos programas de assistência social.

As múltiplas e complexas vulnerabilidades sociais vividas por uma parcela expressiva da população demandam abordagem multidimensional e integrada, articulando as dimensões social, ambiental e econômica. Uma abordagem que seja consistente com a Agenda de Desenvolvimento Sustentável da ONU. A Agenda 2030, como é conhecida, é fortemente inspirada nas políticas sociais e ambientais brasileiras, mas que o governo Bolsonaro optou por ignorar. O desafio será articular os novos mecanismos de proteção social e laboral às oportunidades postas para avançar na transição ecológica, economia e empregos verdes.

As políticas sociais brasileiras, em especial as de proteção social, requerem um modelo sustentável de financiamento, o que implica rever o modelo regressivo de tributação, evitar a evasão fiscal e a alocação ineficaz de recursos públicos. O Sistema Único de Assistência Social (Suas) e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) não vivenciaram a plena implementação de seus modelos. É urgente que se ampliem e modernizem suas redes de serviços. Carecemos ainda de melhorar a contratualização e aumentar a qualificação da força de trabalho desses dois sistemas.

Neste contexto de crises sobrepostas e forte pressão do calendário eleitoral, a tarefa mais urgente é recuperar o sentido republicano das ações governamentais: impessoal, racional e equânime. Talvez isto seja pedir demais para o presente. Talvez esta seja a tarefa do futuro imediato: recuperar a credibilidade do governo federal e de suas políticas públicas. •


*Rômulo Paes de Sousa é pesquisador titular da Fiocruz Minas, foi secretário-executivo do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tereza Campello é titular da cátedra Josué de Castro da USP, foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Amadorismo insustentável”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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