Esther Solano

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Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

O Brasil não tem pobres, apenas empreendedores que precisam de tempo

No neoliberalismo, o sucesso e o fracasso são despolitizados. Tudo se resume ao mérito ou culpa do indivíduo

O neoliberalismo, ainda mais em um país como o Brasil, aniquila (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
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Saía de casa para visitar, com meus alunos, o Centro de Memória Sindical em São Paulo, quando se atravessou a vida com seus paradoxos. No primeiro semáforo depois de sair de casa, um homem vendia cinco panos por 10 reais, caminhando entre os carros. O vendedor devia ter uns 50 anos, visivelmente empobrecido, visivelmente cansado e visivelmente triste. Ainda mais triste que o olhar do homem que vendia panos eram as palavras escritas num cartaz que ele levantava com uma mão: “Sou empreendedor, só preciso de tempo”. Senti um nó na garganta e no estômago quando li essas palavras, por causa da violência tão monstruosa que elas escondiam. Ele, cujo negócio se resumia a cinco panos por 10 reais, não era pobre, era empreendedor. 

O neoliberalismo, ainda mais em um país periférico como o Brasil, aniquila. Isso sabemos muito bem. Mas aniquila com maestria, com um virtuosismo de cair o queixo. A racionalidade neoliberal penetra as mentes, adentra-se pelos corações até invadir tudo. A racionalidade neoliberal constrói-se em uma lógica perversa do sujeito do desempenho, o empreendedor de si mesmo, o homem batalhador. Como consequência, a vida despolitiza-se. A conquista é produto unicamente de nosso trabalho e de nosso esforço. Ao longo destes anos, nas minhas entrevistas com conservadores brasileiros de classes populares ouvi coisas do tipo “eu ganhei Minha Casa Minha Vida, mas não que tenha casa agora pelo programa ou pelo PT. Eu teria conseguido do mesmo jeito, porque eu me esforço muito e eu merecia”. Ou “meu filho conseguiu entrar na universidade pelo Fies, mas isso não teve nada a ver com o Fies, realmente foi ele que trabalhou duro e estudou muito”. Eu mereci porque trabalhei. 

Meu mérito, minha conquista. Meu fracasso, minha culpa. A culpa também é produto da lógica do neoliberalismo. O sucesso despolitiza-se, mas o fracasso também. Lembro-me da entrevista de uma mulher adolescente, digamos que de nome Bárbara, negra e periférica, que iria votar em Jair Bolsonaro e repetia, convicta, o discurso da meritocracia. Ela me disse “eu vou prestar o vestibular, e não tem essa de que eu tenho menos oportunidades que os jovens brancos de classe média. Isso é mimimi, racismo reverso. Vou estudar muito e se eu não conseguir será minha culpa, será porque eu não sou boa o suficiente para estudar”.

Bárbara, mulher negra periférica, me disse, com calma e contundência, que racismo, pobreza e machismo, no Brasil, são “vitimismo”. Penso com frequência nela. Não sei se ela entrou na faculdade. Se não, com certeza ela sente que o fracasso foi culpa dela, mas, calma, o neoliberalismo também tem resposta para isso, basta combater a dor com remédios. Você não é um vencedor, é um fracassado, sente culpa, mas, tranquilo, não pense demais, não se insubordine, não se inquiete, pelo amor de Deus não vá protestar na rua nem caia na loucura de arranjar um movimento social, sindicato ou partido, tome remédio. O adoecimento mental, resultado do modelo da sociabilidade meritocrática, resolve-se não com política ou luta, mas com pílula. “Patologizar” a vida é a saída.

João Doria soube muito bem jogar esse jogo na sua campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo, em 2016. Ele era o João Trabalhador, que acordava cedo e, suando a camisa, conseguiu se transformar no Doria empresário. Querer é poder. Você é foda, você é um vencedor, basta ter vontade e correr atrás. Todo mundo pode ser um empresário de sucesso. Do neoliberalismo ao coaching, outra ferramenta feroz de controle e violência. Entrem numa livraria e folheiem as obras de autoajuda e coaching nas prateleiras. Parece que você tem a obrigação de estar sempre feliz e de ser um campeão. Tristeza ou derrota não aparecem no vocabulário. Eu sinto arrepios com esses livros e sempre lembro da Bárbara. A partir de hoje lembrarei também do homem que vendia panos. Ele não era pobre, era empreendedor. 

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