Paulo Nogueira Batista Jr.

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Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

O Brasil e a guerra na Ucrânia

O Brasil deve ser um país não alinhado. Precisamos, por exemplo, voltar a ser participantes ativos dos BRICS, algo que se perdeu nos governos Temer e Bolsonaro

Bolsonaro na ONU (Foto: Johannes EISELE/AFP)
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Qual deve ser a posição brasileira diante da guerra na Ucrânia? Em sua maior parte, a mídia corporativa brasileira, seguindo caninamente a mídia ocidental, já escolheu um lado. Vem demonstrando uma parcialidade escancarada, comprometendo a sua obrigação de informar.

É um grave equívoco. Não cabe ao Brasil tomar partido neste complicado conflito. E não é o que tem feito Brasília. Mesmo os adversários mais renhidos de Bolsonaro, entre os quais me incluo, precisam reconhecer que é correta a posição inicial do governo brasileiro, em especial do Itamaraty. Bolsonaro, como sempre, dá as suas derrapadas. Resiste, porém, à pressão dos EUA e da mídia tradicional brasileira para que se alinhe ao lado ocidental. Por enquanto. Como tudo é muito volátil, preciso dizer que estou escrevendo em 2 de março.

Para entender o que está em jogo, é fundamental dar-se conta de que o que estamos vendo não é primordialmente uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim uma guerra entre a Rússia e os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar comandada pelos Estados Unidos. A Ucrânia, coitada, entrou como gaiato no navio. Está lutando por procuração. Foi levada por lideranças nacionais levianas e incompetentes a uma confrontação com a segunda maior potência militar do planeta.

O Brasil não pode, evidentemente, aceitar a invasão de um país por outro. Precisamos nos ater à nossa posição tradicional de apoiar a busca de uma solução diplomática e pacífica para as desavenças entre países.

Mas precisamos, também, entender o lado da Rússia. Como este tem recebido pouca atenção na mídia brasileira, vou tentar explicá-lo brevemente.

Toda a confusão começa com a ampliação da Otan para o Leste da Europa desde os anos 1990, como vem sendo crescentemente reconhecido no Brasil. Em etapas, aproveitando a fraqueza da Rússia na época, a aliança militar ocidental foi incorporando países antes pertencentes ao bloco soviético e até mesmo países que resultaram da dissolução da União Soviética.

A crise aguçou-se em 2014, quando o governo ucraniano de Viktor ­Yanukovich, próximo a Moscou, foi derrubado por um golpe de Estado, uma daquelas revoluções coloridas, semelhante à que se organizaria no Brasil e levaria à derrubada de Dilma Rousseff.

A pretensão americana de incorporar a Ucrânia à Otan foi o passo fatal. Perseguida por Kiev depois do golpe de 2014, essa pretensão não poderia ser aceita por Moscou sem colocar em risco a segurança nacional da Rússia. Olhem o mapa e vejam a distância que separa a fronteira com a Ucrânia da capital russa.

Mesmo assim, volto a dizer, o recurso da Rússia à violência e à invasão da Ucrânia é deplorável. Não pode ser coonestado pelo Brasil. Temos de ser solidários com o povo da Ucrânia, que passa por uma experiência terrível.

Pode-se perguntar: o fato de o Brasil não poder apoiar a Rússia e condenar a invasão prejudica os BRICS? Alguns, apressados, já decretaram o fim do agrupamento. Isso não tem o menor cabimento.

Nunca fomos nem pretendemos ser uma aliança política. Os BRICS são um clube ou mecanismo de cooperação com propósitos muito importantes, mas circunscrito primordialmente à área econômico-financeira. A Rússia sabe perfeitamente disso e não espera uma adesão do Brasil às suas posições políticas.

A posição inicial do governo Bolsonaro após a eclosão da guerra tem sido basicamente correta, como disse, mas não se deve esquecer que este governo deu um tremendo passo em falso num tema correlato, passo em falso que não tem sido muito lembrado agora. Refiro-me ao fato de que, em 2019, quando Donald Trump ainda era presidente dos EUA, Bolsonaro celebrou a designação do Brasil como “aliado extra-Otan”. Isso não fazia sentido nenhum na época, e faz menos ainda hoje em face da confrontação Rússia/Otan.

O Brasil deve ser um país não alinhado. Precisamos, por exemplo, voltar a ser participantes ativos dos BRICS, algo que se perdeu nos governos Temer e Bolsonaro. Temos de retomar e fortalecer as nossas relações com a América Latina e a África, sem parti-pris ideológico. No entanto, essa abertura para o chamado Sul político não implica relações hostis com os Estados Unidos, a Europa ou o Japão. Ao contrário, o Brasil deve buscar relações positivas e construtivas com todas as nações.

Claro que pouco ou nada disso será possível no governo Bolsonaro. Porém, sob novo comando a partir de janeiro de 2023, o Brasil poderá fazer tudo isso e muito mais. Poderá até desempenhar, se houver interesse das partes, um papel de pacificação do conflito no Leste da Europa, conflito que, infelizmente, não será resolvido tão cedo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Brasil e a guerra na Ucrânia”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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