

Opinião
O ‘canibalismo’ foi cortina de fumaça para o desmonte da Funai. Mas nós, originários, estamos atentos e vigilantes
O decreto nº 11.226/22 impõe a extinção de instâncias de participação social dos povos indígenas, somada à supressão de atribuições de unidades administrativas que atuam junto às comunidades


Uma boa estratégia para desviar a atenção da realidade é debater uma fantasia. Imaginemos uma terra chamada Pindorama, cujo governante revelasse que só não comeu carne humana porque não foi apoiador por seus comissionados de gabinete – aqueles com os quais divide salários e histórias, seus cúmplices do desatino de uma desrealidade.
Ainda no campo especulativo, suponhamos que, no último dia 7 de outubro, tenha sido publicado o Decreto nº 11.226/22, que Aprova o “Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Fundação Nacional do Índio – Funai”, que remaneja e transforma cargos em comissão e funções de confiança.
Agora, imagine que o texto entra em 27 de outubro de 2022, três dias antes das eleições do segundo turno na suposta Pindorama.
Tal decreto traz em seu bojo a gravíssima extinção dos Comitês Regionais e do Conselho Fiscal. Quando isso parecia a gota d’água, aí sim, a onça bebe água, e são suprimidas também as atribuições das Coordenações Regionais, das Coordenações das Frentes de Proteção Etnoambiental e das Coordenações Técnicas Locais que anteriormente eram previstas pelo Decreto anterior.
Do abstrato para o concreto, a verdade é que não temos tempo!
A mata está queimando, o garimpo está destruindo a natureza, as árvores estão caindo. A irresponsável “porteira aberta” desde a assunção deste governante nos leva a tragédia anunciada até mesmo pelo próprio agronegócio – que, nas falas de uma legítima representante deste movimento, enuncia-se: “Isso é o verdadeiro Risco Brasil, que poderá diminuir a exportação brasileira, afetando a criação de emprego e a balança comercial”.
Se de um lado o agro lamenta o fim da prosperidade, caso o não comedor de carne humana seja reeleito, do outro, o Decreto nº 11.226/22 viola os princípios constitucionais: da vedação ao retrocesso social e da autodeterminação dos povos originários. Dois princípios resguardados pela Constituição Federal de 1988, e por Tratados Internacionais de Direitos Humanos, que são valores primordiais aos povos indígenas.
Do Brasil para o mundo, precisamos relembrar a Convenção que o atual inquilino do Palácio do Planalto quis denunciar, e nesse ato se opor. As modificações previstas pelo Decreto nº 11.226/22 se opõem completamente às previsões impostas pelo artigo 6º e 7º da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT – sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil e aplicável aos povos indígenas em Estados autônomos.
Em suma, os artigos supracitados exigem que os governos consultem os povos interessados sempre que for prevista qualquer alteração legislativa ou administrativa suscetíveis de afetá-los, bem como, aponta que os povos devem estabelecer os meios como os indígenas devem participar do processo de escolha ou alteração com livre participação, com boa fé, buscando sempre garantir e jamais subtrair direitos.
Em que pese algum progresso na salvaguarda de terras às sociedades indígenas, nos governos anteriores, por parte do Estado, ainda existem diversas faixas territoriais a serem demarcadas, e vários contingentes destituídos de terra ou com tamanhos insuficientes para que sua sobrevivência esteja assegurada. Portanto, de igual forma, é deveras preocupante a situação de muitas outras que têm sido esbulhadas por grupos locais não indígenas.
O foco da carne humana desviou o desmonte da FUNAI, mas nós, originários, estamos atentos e vigilantes. Sempre estivemos, sempre estaremos e nunca deixaremos de estar.
Reconstruir é preciso. Para tanto, caminhamos juntos e apoiamos por onde devemos andar para termos uma Pindorama melhor, e precisamos unir todos e todas nessa conquista contra o fim do Estado Democrático Nacional.
E falando em democracia, falamos em demarcação, termo que nunca foi utilizado em homologações de terras pela FUNAI nesse governo. Ambos, Democracia e Demarcação remetem à limite: aquele a limite político, e este, a limite de terra. Não se enganem, Democracia é demarcação, tanto para nós indígenas, quanto para todos os brasileiros. Democracia é vida, é filha da esperança e mãe do nosso futuro.
A extinção de instâncias de participação social dos povos indígenas, somada à supressão de atribuições de unidades administrativas que atuam junto às comunidades indígenas, impostas pelo Decreto nº 11.226/22, reforça a postura da gestão atual da FUNAI, que, além de omissa, atua na direção contrária aos direitos indígenas, fato que atesta a urgência de um controle maior no sistema por parte do Poder Judiciário que não pode ser usurpado pelo legislativo.
Ante o exposto, conclui-se o óbvio, que de fato o Decreto nº 11.226/22 fere manifestos princípios que preservam os direitos e interesses das comunidades indígenas.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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