“Cruzamos muitas linhas vermelhas que não haviam sido ultrapassadas antes”, disse em uma live Jerome Powell, presidente do Federal Reserve. “Trabalhamos muito duro para nos explicar ao público em geral.” O Financial Times reconhece que o Banco Central dos EUA tomou uma variedade de ações para apoiar a economia: reduzir as taxas de juro para perto de zero, implementar compras ilimitadas de títulos para acalmar os mercados e iniciar programas de empréstimos de emergência para manter o crédito fluindo para empresas e governos estaduais. Vários desses esforços estão em território não testado, incluindo programas que emprestam a empresas de médio porte, compram títulos corporativos e compram dívidas de estados e grandes cidades.
Na pandemia econômica, os nexos monetários foram rompidos e os proprietários privados, aí incluídos os proprietários da força de trabalho, foram expropriados. A propriedade perdeu sua função crucial de legitimar a apropriação da renda e da riqueza. A precificação dos ativos só aponta para baixo, jogando os juros longos para cima. Incumbe ao Banco Central achatar a curva, comprando os longos e vendendo os curtos.
O mercado vira uma mixórdia: não é capaz de diferenciar os ativos de grau de investimento daqueles de alto risco. Trata-se do fenômeno da indiferenciação. A fuga desesperada para a liquidez atesta que, na derrocada, não há ativos melhores ou piores. Todos são fâmulos desprezíveis perante o dinheiro. A crise desvela o segredo que o sodalício dos crentes da sabedoria informacional dos mercados – uma seita poderosa – pretende abafar: em sua dimensão monetária, o capitalismo moderno revela o indissociável contubérnio entre o universal e o particular, entre o Estado e o mercado, entre a comunidade e o indivíduo.
Arrisco uma incursão no território das relações entre dívida pública e dívida privada ao longo dos ciclos de expansão e contração da atividade econômica. O endividamento de empresas e famílias expande-se nos períodos de crescimento e “confiança”. Os bancos, sob a supervisão dos bancos centrais, emprestam às empresas e às famílias. As instituições financeiras não bancárias emitem títulos que, abrigados nos portfólios, próprios e de outras instituições, amparam as “poupanças” das empresas e das famílias, poupanças acumuladas ao longo dos sucessivos circuitos de gasto-emprego-renda.
Em informe recente, o Banco da Inglaterra ensina que, nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, depósitos à vista, meio de pagamento, dinheiro de crédito.
A criação monetária, até aqui, depende da avaliação dos bancos a respeito do risco de cada aposta privada. As políticas monetária e fiscal do Estado estabelecem, em cada momento do ciclo de crédito, as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores. Somente um instrumento dotado de reconhecimento diretamente social, garantido pelo Estado, é capaz de assegurar a validade das decisões e dos critérios de enriquecimento privado nas economias capitalistas. O dinheiro é criado e ingressa na circulação com a bênção do Estado e a unção das relações de propriedade, as relações débito-crédito.
A criação monetária executada pelos bancos sob a supervisão do Estado sanciona as relações de propriedade: o banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. O devedor exercita seus anseios de enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial, promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se o devedor não pagar a dívida, o banco, agente privado do valor universal, deve expropriar o inadimplente.
Nos bons tempos, a precificação dos ativos gerados no processo de endividamento – títulos públicos e privados negociados nos mercados secundários e abrigados nos portfólios das instituições – definia uma curva de juros ascendente conforme a duration. Ascendente, porém, bem-comportada, enquadrada nas “regras” de precificação do mercado.
O pandemônio econômico ensina: “O Dinheiro acima de Todos, o Estado acima de Tudo”. A restauração das relações de propriedade e de apropriação só pode ser efetuada pela ação discricionária do Estado – Banco Central e Tesouro Nacional. É o paradoxo da livre iniciativa. A iniciativa é livre enquanto os empreendedores estão legitimados pelo manto protetor da moeda, instituição social administrada pelo Estado.
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