Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

O Auxílio Brasil e a lógica do voto no Sudestinismo

No sudestinismo, a culpa é sempre do pobre. E o pobre é (quase) sempre nordestino

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No Brasil não existem sudestinos e nem sulistas. Já os nordestinos, na visão dos dois primeiros grupos, não apenas existem, como constituem um povo quase supranacional. Semi-estrangeiros que, de vez em quando, aportam nas terras civilizadas do Sudeste para incomodar. E, como tal, segundo as percepções sudestinas e sulistas, compartilham os mesmos sotaques, gírias, gostos, características físicas, condições sociais e econômicas e, o mais importante, disposições políticas. 

Evitarei tratar de elementos mais óbvios e explícitos que demonstram o quanto o preconceito contra nordestinos é enraizado na cultura brasileira. Gostaria de tratar de um elemento mais sutil desse fenômeno que chamarei aqui de sudestinismo. E, claro, não estou fulanizando a discussão. Falo de uma mentalidade, não de sujeitos coletivos ou singulares.

Recentemente, ouvi de um famoso jornalista paulista, em um podcast de altíssima qualidade, que Jair Bolsonaro estaria mirando o eleitorado nordestino ao lutar com unhas e dentes para implantar o Auxílio Brasil, um programa eleitoreiro no valor de 400 reais. 

Talvez o presidente, de fato, esteja pensando nisso, não duvido. No entanto, nunca disse que estava. Então, o que leva o excelente apresentador e jornalista a afirmar tal coisa? Porque, meus caros, é simples: quando se trata de relacionar o Nordeste, a política e os nordestinos pela lógica sudestina, o improvável se manifesta em assustadora harmonia: o antibolsonarista convicto vai pensar exatamente como a liderança maior do bolsonarismo.

Por duas razões, a meu ver.

A primeira diz respeito a como os nordestinos sempre recebem um estigma curioso: pobres e miseráveis que trocam o voto por comida. É daí que surge a velha falácia de que nordestino não sabe votar. E quando chegamos a um tal estado de agravamento da fome e da miséria no país, lá vai o sudestinismo usar o velho e falso “silogismo”: fome, logo Nordeste.

Ora, o registro de capa do Extra flagrando pessoas vasculhando carcaças dispensadas por algum açougue se deu onde? O Rio de Janeiro fica no Nordeste? Aqueles cariocas não serão beneficiados pelo Auxílio Brasil e, logo, poderão dar o voto a Jair Bolsonaro em razão desse benefício? 

Percebam que há um duplo efeito nesse tipo de raciocínio: de um lado, um estigma em que pobres e miseráveis são espécimes quase exclusivas da região Nordeste. Mas pobre há, desgraçadamente, em tudo quanto é lugar desse Brasil. E cada vez mais. Do outro, um raciocínio que subtrai qualquer capacidade racional no comportamento eleitoral dos mais pobres.

Os pobres, e apenas eles, vendem seus votos em troca da grana que é convertida em comida. Pobre vota com o estômago. E pobre costuma ser nordestino, não é? Quem vota racionalmente, quem sabe votar, é quem tem certas condições materiais e não nasceu em certa região. Trata-se de um enorme falácia por dois motivos: (1) quem mais se locupleta com recursos do Estado está no alto da pirâmide social brasileira; (2) a vontade expressa no voto é muito mais complexa do que julga a vã filosofia elitista regionalmente preconceituosa dessa mentalidade.

O finado Bolsa Família ajuda a explicar a segunda razão do argumento. Opositores à esquerda e à direita sempre adoraram atribuir o sucesso presidencial petista ao programa. Os pobres beneficiários teriam eleito e reeleito Lula e Dilma por conta, tão e apenas, da grande fortuna que recebiam em suas contas todo mês. E aí, sendo o Nordeste a região com o maior número de beneficiários, logo estaria provado o impacto eleitoral do programa e de mais nenhum outro fator na melhora de vida desses eleitores. 

O que os antipetistas, à esquerda e à direita, esqueceram de notar enquanto condenavam o programa com base numa falácia, foi de se perguntarem qual era o estado que seguia a Bahia em quantidade de beneficiários do Bolsa Família. Era São Paulo. Região Sudeste. Aécio Neves obteve lá 64,31% dos votos contra apenas 35,69% de Dilma Rousseff. Cadê o efeito do Bolsa Família? Seguindo essa lógica determinista, o segundo estado com o maior número de beneficiários do finado programa não poderia dar uma derrota dessa magnitude como se viu. Ao menos não poderia ser assim se concluímos que o Bolsa Família foi o responsável pelo resultado na Bahia.

 

O estado do Acre tinha cerca de 43% de sua população cadastrada no Bolsa Família. Em 2014 deu vitória a Aécio Neves e, em 2018, a Jair Bolsonaro. Falando em 2018, Ciro Gomes teve quase 10 pontos percentuais de vantagem sobre o candidato petista, Fernando Haddad, no estado do Ceará. O Ceará é um estado do Nordeste com muitos beneficiários do Bolsa Família. O que aconteceu?

Por que cearenses preferiram Ciro Gomes e não o candidato petista que, por lógica, seria o maior beneficiário eleitoral do Bolsa Família? Simples. Porque não é assim que todos nós votamos. Não votamos com base numa lógica unidimensional, inclusive meramente fisiológica, ao contrário do que fazem crer os discursos de quem adora justificar suas derrotas eleitorais ou frustrações políticas.

E quando essa mentalidade tão típica do sudestinismo sustenta a lógica simplista desse preconceito social e político, assim como trata apenas da pobreza e da miséria no Nordeste quando se trata de falar de comportamento eleitoral, reforça-se o estigma da irracionalidade política do pobre e do nordestino porque quem só vota com estômago é pobre e pobre, para efeitos políticos e eleitorais, só se enxerga lá. Uma lástima.

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