

Opinião
O autoexílio de Jean Wyllys
Talvez Jean encontre algumas respostas, e talvez encontre o anonimato que tanto almeja para cicatrizar suas feridas


“É uma loucura o que está ocorrendo no Brasil, este surto fascista!”, nos disse enfático Jean Wyllys quando conversamos com ele, há algumas semanas, em Madri. Segundo ele, desde o impeachment da presidente Dilma, o pacto democrático no Brasil ruiu e as instituições restaram fragilizadas. Os brasileiros vivem uma farsa.
Em janeiro deste ano, da Europa, anunciou que não retornaria ao Brasil para assumir seu mandato como deputado federal. Havia várias razões para isso, mas a principal se concentrava nas recorrentes ameaças que Jean vinha recebendo.
Você se habitua a ser ameaçado. Esta é uma condição imposta a quase todos que tenham um pouco de visibilidade nestes dias, principalmente aqueles que abordam temas polêmicos ou controversos. Você se habitua a ser ofendido, insultado, ridicularizado e ameaçado, principalmente porque você logo se dá conta que os insultos e ameaças partem de adolescentes ou adultos frustrados, protegidos pelo anonimato ou pela sensação de impunidade proporcionada pela Internet. Pessoas sem rosto atacando rostos conhecidos.
No entanto, nem todas as ameaças são iguais. Num clima de crescente polarização política e ideológica, o que temos visto é que alguns indivíduos estão se sentindo encorajados a ir além das meras ameaças via redes sociais.
Quando Jean Wyllys comunicou seu autoexílio foi um choque, tratava-se de uma mensagem clara do quão fraturada estava a democracia brasileira. Afinal, ninguém despreza um mandato de deputado federal por pouca coisa, ao contrário, gasta-se milhões e um esforço descomunal para obter um deles. É evidente que este não era o primeiro indício e talvez nem o mais contundente, mas se somava a um conjunto deles que projetava uma imagem bastante assustadora do cenário político do país.
Sem dúvida alguma, um destes momentos trágicos e preocupantes foi a execução da vereadora Marielle Franco e seu motorista em março de 2018. Dada a sofisticação da operação para matá-la, o tipo de armas usado e o contexto político do Rio de Janeiro, logo nos demos conta que aquele não era apenas mais um homicídio como tantos outros num dos países mais violentos do mundo.
O assassinato de Marielle não era tão somente um ataque a uma cidadã brasileira, mas a uma vereadora eleita que representava um conjunto de valores que já eram marginalizados histórica e socialmente. Como a própria Marielle se identificava, ela era “mulher, negra, gay, da favela”, enfim, tudo que a classe média branca e conservadora brasileira abominava e temia, ela era a antítese daquilo que se entende habitualmente como “cidadão de bem”, ainda mais porque esta vereadora pertencia a um partido de esquerda e defendia pautas que no Brasil ainda são tabus, como aborto e feminismo.
A execução de Marielle foi um daqueles momentos críticos e sintomáticos, quando já não podemos mais fingir que há normalidade democrática. Uma vereadora de uma das principais capitais do país havia sido assassinada e tudo apontava para milicianos, estas forças paramilitares que dominam conjuntos de favelas cariocas, e cuja influência não pode ser menosprezada. Estas suposições se confirmaram quase um ano depois, quando os primeiros suspeitos de envolvimento com o crime foram presos: milicianos. Ainda não se divulgou quem teria sido o mandante da execução. O Delegado que desvendou até ali o caso foi destituído no dia seguinte ao da prisão.
O clima de animosidade política se acentuou ao longo de 2018 e se tornou insustentável durante a campanha eleitoral. Abaixo de Lula, que era candidato, mas que infalivelmente seria inviabilizado mais tarde pela Justiça, vinha ascendendo nas pesquisas um improvável Jair Bolsonaro, candidato extremamente divisivo, defensor da ditadura militar no Brasil, que não poupava elogios a reconhecidos torturadores daquele regime, e que crescia nas pesquisas justamente por causa de uma inflamada retórica antiesquerda. Em seu discurso durante a votação a favor do impeachment da então presidente Dilma em 2016, Bolsonaro exultou a memória do Coronel Carlos Brilhante Ustra, que, segundo as palavras do próprio Bolsonaro, havia sido “o terror da Dilma Rousseff”. Como que confirmando isso, numa entrevista ao programa Roda Viva, ao ser perguntado sobre qual era o seu livro de cabeceira, Bolsonaro respondeu “A Verdade Sufocada”. O autor? Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI e que havia pessoalmente supervisionado e participado de sessões de tortura nos anos 70.
Na sequência imediata do estridente voto de Bolsonaro, como a votação foi feita por ordem alfabética do pré-nome, coube ao deputado Jean Wyllys dar seu voto, no caso, contra o impedimento da presidente. Ao concluir seu voto, Bolsonaro, que ainda estava próximo, o insultou e Jean cuspiu em Bolsonaro, que na época era apenas um controverso deputado federal do baixo clero. Aquela cusparada de Jean Wyllys em Bolsonaro dentro do Parlamento, por mais repreensível que tenha sido, lavou a alma de muitos brasileiros depois de terem sido obrigados a ouvir a homenagem a um conhecido torturador da ditadura. Mas nem Jean nem ninguém poderia imaginar que aquele deputado polemizador, mas até então irrelevante, se tornaria o presidente do Brasil tão poucos anos depois.
Voltamos a 2018 e o que se viu após a morte de Marielle foi um esforço, possivelmente coordenado, para destruir a reputação da vítima. Parecia necessário um segundo assassinato de Marielle. Inúmeras mentiras começaram a ser propagadas nas redes sociais, no Facebook e em grupos de Whatsapp, associando-a a grupos criminosos, a traficantes, disseminando informações e imagens falsas da vereadora assassinada. Não bastava matá-la fisicamente, era preciso erradicar também a memória dela e minimizar a gravidade do crime praticado não apenas contra uma representante eleita, mas contra a própria ordem democrática. Um país que mata seus representantes corre sérios riscos, não nos enganemos.
Marielle e Jean tinham muita coisa em comum, defendiam pautas semelhantes e pertenciam ao mesmo partido. Mais que isso, eram amigos.
A retórica antiesquerda aumentava em intensidade e, naquele momento, havia se tornado claro que a retórica por si não satisfaria mais seus enunciadores, eles iriam avançar. Jean Wyllys já sofria ameaças antes disto e, assim como se deu com Marielle após sua morte, formou-se uma forte campanha de difamação contra ele nas redes sociais. Figuras como Alexandre Frota, ex-ator da Globo e do submundo pornô, propagavam mentiras sobre ele e, mesmo após processá-las e ser indenizado por isto, a imagem de Jean continuava sendo diariamente atacada e apoucada. A máquina de destruição de reputações da extrema-direita trabalhava dia e noite.
Então, em 6 de setembro de 2018, ocorreu algo inconcebível. Em Juiz de Fora, durante um ato de campanha de rua, o candidato Jair Bolsonaro foi esfaqueado. Gravemente ferido, ele foi levado ao hospital e logo analistas políticos cogitaram que, se sobrevivesse ao atentado, Bolsonaro ganharia as eleições. Aquele poderia ser o ponto de virada numa campanha extremamente polarizada e, no caso particular de Bolsonaro, sem projetos bem definidos para o Brasil. O autor do atentado foi preso e identificado: Adélio Bispo. Laudos da Polícia Federal apontam que ele agiu sozinho e peritos declaram que Adélio tem transtornos mentais. Mas este crime, muito diferentemente daquele com alto grau de sofisticação que matou Marielle, deu margem para uma série de especulações e teorias conspiratórias.
Cogitou-se que poderia ser uma obra da esquerda para tirar Bolsonaro do páreo. Alguns anos antes, Adélio havia sido filiado do PSOL, o mesmo partido de Marielle e Jean, e isto bastou para os bolsonaristas começarem a conjeturar e elaborar hipóteses ensandecidas.
No bojo desses, outros episódios se desenrolaram.
Em agosto de 2018, a doutora Débora Diniz, antropóloga e professora da UNB, participou de debates no Supremo sobre a descriminalização do aborto. Já sofria ameaças antes, mas a envergadura desta discussão e a exposição a deixaram ainda mais em evidência. Foi então que, em novembro, dada a gravidade das ameaças, Débora Diniz se viu obrigada a deixar o Brasil. Hoje é pesquisadora na Brown University, nos EUA.
Em dezembro, a polícia conseguiu desmantelar um plano para o assassinato de Marcelo Freixo, também do PSOL. Estava sendo organizado por milicianos, pelo mesmo grupo envolvido na execução de Marielle.
O que se podia perceber era um padrão recorrente de ameaças a políticos de esquerda e professores, em alguns casos extremos levando à violência de fato.
Então, como indicavam as últimas pesquisas, Bolsonaro foi eleito presidente. Jean Wyllys foi reeleito deputado federal. Há muito que ele sofria ameaças, inicialmente em grupos da deep web, conhecidos como chans, mas, segundo Jean, “as ameaças foram subindo de nível. O motivo delas era a minha agenda em favor dos direitos LGBT, em favor dos direitos humanos, tinha a ver com o fato de eu ser um gay assumido”. Para certos grupos, era inaceitável que alguém como ele ousasse se alçar do lugar que era reservado a pessoas como ele. Aliás, para Jean, esta também seria a razão essencial para a execução de Marielle Franco. “O crime da Marielle é um marco na História do Brasil, e talvez seja o mais importante crime político já ocorrido na História do Brasil, mais importante talvez até do que a própria execução do Rubens Paiva, porque Marielle representava um conjunto de mobilidades produzidas pela nova república, sobretudo pela era Lula”, ele afirmou em nossa conversa. Assim, o que havia começado como ameaças aparentemente inofensivas foi tomando contornos reais, escalando para ataques vindos de grupos e influenciadores antipetistas e de extrema-direita, até que, enfim, culminou na morte de Marielle. Jean Wyllys já não podia mais ignorar o risco à sua própria vida e, assim, em outubro de 2018, ele entrou com um pedido de proteção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que lhe concedeu medidas cautelares para que o Estado brasileiro o protegesse. Nesta época, ele já recebia escolta parlamentar, porém restrita ao horário de expediente, e o governo brasileiro ignorou a ordem da CIDH. Segundo Jean, “a Polícia Federal nunca levou isto a sério, pois se trata de ameaças a minorias”.
A decisão de deixar seu país não foi simples, e quando indagado sobre as acusações de que teria abandonado o Brasil, ele rebate inflamado de indignação: “abandonou é o caralho!”
Na presença de Jean, pudemos perceber o quanto ele é um homem machucado pela sua trajetória como parlamentar, pela homofobia que sofria até mesmo no interior da Câmara. Na nova vida dele em Berlim, cidade que escolheu para realizar seu doutorado, no qual analisará o fenômeno das fakes news, Jean Wyllys busca uma rotina, o direito de poder se perder na multidão sem ser insultado nas ruas e sem medo de agressões. Tornar-se um anônimo. “Vim em busca disto, em busca por uma liberdade”, ele diz, “não quero virar figura pública aqui”.
Apesar deste anseio por tranquilidade, Jean tem cumprido uma agenda agitada de palestras e eventos pela Europa. Promete não deixar de lutar por aquilo em que acredita, “as causas pelas quais eu luto não ganham nada com a minha morte. Não tenho vocação alguma para ser mártir nem herói”, ele afirma, rememorando aquilo que o ex-presidente Pepe Mujica lhe havia dito: “os mártires não são heróis. Cuida-te”.
Acompanhamos Jean Wyllys até a porta do hotel. Logo ele retornaria a Berlim para retomar a sua carreira acadêmica e, quem sabe, conseguir compreender melhor parte deste mecanismo de mentiras e distorções que pôs a extrema-direita brasileira no poder e, mais do que isto, que arruinou a vida política e pessoal de Jean através de um discurso intolerante e polarizador, este “surto fascista” que também vem rondando outras democracias pelo mundo.
Talvez Jean encontre algumas respostas para isto, e talvez também encontre o anonimato que tanto almeja para cicatrizar suas feridas, a liberdade que procura e que seu país lhe negou. Oxalá!
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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