

Opinião
O audiovisual brasileiro deve ser uma causa nacional
É hora de o Congresso se debruçar sobre a regulação do audiovisual brasileiro, para garantir o crescimento e fortalecimento de uma das indústrias mais relevantes para o desenvolvimento econômico no século 21


O audiovisual brasileiro ainda não se recuperou totalmente da crise da pandemia e das sequelas provocadas pela guerra cultural deflagrada pelo governo Bolsonaro, mas a agenda cultural que mais tem chamado a atenção de todos que se interessam pelo desenvolvimento cultural do país, já retomou o lugar que lhe cabe na pauta dos temas nacionais. Afinal, existe quase consenso sobre a importância das economias criativas para o desenvolvimento econômico do Brasil neste século 21.
A regulação do Vídeo sob Demanda (VoD) e do streaming em tramitação no Congresso Nacional poderá se tornar o primeiro passo para estruturar, de fato, nosso mercado cinematográfico e todo o audiovisual, garantindo o desenvolvimento da indústria. Já somos o segundo maior mercado do mundo de VoD e streaming e sua devida regulação, a partir dos interesses nacionais, permitirá ao Brasil ter um setor capaz disputar não só o mercado interno, mas também o mercado internacional.
Pela sua relevância, a regulação da nossa indústria criativa tem potencial de superar os conflitos políticos mais comezinhos e se constituir em uma questão nacional, capaz de agregar setores de vários campos políticos em torno de um projeto de desenvolvimento cultural e econômico para o país.
É bem verdade que a cultura (expressões culturais, patrimônio e artes, música e artes cênicas e outros) e as mídias (editorial e audiovisual) ainda representam menos de 20% da chamada economia criativa, que emprega 7,4 milhões de pessoas e, em 2020, respondeu por 3,11% do PIB brasileiro segundo o Observatório de Dados do Itaú Cultural, divulgado em 2023. Mas é essa fatia da economia criativa que reúne a maior produção cultural do país e suas manifestações mais vivas, como o artesanato, a moda, o design e outras, ligadas à memória, que têm que ser preservadas e registradas. Essas diversas dimensões que fazem parte das economias criativas e têm um potencial econômico, além do cultural, precisam ser estimuladas por políticas industriais e outras, capazes de garantir uma parcela significativa do desenvolvimento industrial do Brasil.
Profundamente golpeada pela epidemia da Covid-19 e pelas hostilidades do governo anterior, a indústria da economia criativa no Brasil começou a se reerguer, a partir de uma série de medidas de proteção e estímulo às pequenas e médias empresas, que representam a maioria de seus empreendimentos, a partir de 2022. O Observatório do Itaú Cultural registra crescimento da atividade já no segundo trimestre de 2023 em relação a igual período de 2022. Embora o crescimento fosse modesto, houve recuperação dos empregos em segmentos como museus, gastronomia, design e desenvolvimento de software e games. Esse processo faz parte da retomada do caminho democrático do país.
Mas o segmento de audiovisual cobra do governo uma agenda mais propositiva, capaz de impulsionar as atividades do setor e, em especial, do cinema brasileiro, da produção de documentários, de séries e curtas, etc… Na avaliação de especialistas, o Brasil carece de uma política industrial abrangente para as economias criativas, com destaque para o setor audiovisual.
A regulação do mercado do VoD e do streaming deve ter, como objetivo, criar o ambiente favorável que realmente faça florescer todo o potencial dessa indústria. Estamos, pela grandeza do nosso mercado, na mira cobiçada das empresas e redes globais – por isso, essa regulação vem sendo considerada pelas lideranças do setor como seminal, urgente e a mais importante, a mãe de todas as batalhas. Além da falta de regulação e de uma efetiva política de apoio e estímulos, capaz de fazer frente ao poderio das empresas globais, a produção de audiovisual enfrenta novas ameaças, tais como o desenvolvimento de sistemas especialistas de inteligência artificial que podem vir a substituir não só atores, mas diretores, roteiristas e produtores.
Ao lado de ameaças tradicionais, o PL que foi aprovado no Senado abre as portas para novas ameaças, como o fato de propor que a legislação venha a considerar como obra brasileira aquelas de propriedade estrangeira e não apenas as de propriedade patrimonial majoritária de brasileiros. A leitura desse PL revela outras novas ameaças que nos deixam reféns e sem controle efetivo do nosso próprio mercado, diante dos meios impulsionados pelo avanço tecnológico das big techs multinacionais, a maioria com sede na Costa Leste dos Estados Unidos.
Para tentar colocar o bonde nos trilhos, o setor, quase por unanimidade, defende a seguinte pauta, que será definida no âmbito do Congresso Nacional. Para cumprir satisfatoriamente essa importante missão, seria importante, como ponto de partida, a criação urgente de uma comissão mista do Senado e Câmara dos Deputados.
São demandas do audiovisual:
1. Proteção aos direitos autorais e patrimoniais da produção brasileira independente. O marco regulatório do VoD deve garantir que os direitos autorais e patrimoniais sobre a obra brasileira independente permaneçam majoritariamente com empresas brasileiras, de acordo com o arcabouço regulatório do audiovisual, sobretudo a Lei 12.485/2011.
2. Visibilidade e garantia de participação no market share para a produção brasileira. A exemplo do que acontece no exterior, adotar mecanismos complementares para o estímulo às produções nacionais e à indução desse conteúdo, levando em conta a proeminência de conteúdo e as cotas de catálogo. A ferramenta de proeminência garante destaque às obras audiovisuais nacionais, expondo o usuário a esses conteúdos de diversas maneiras. Já as cotas de catálogo asseguram a produção ou licenciamento de um quantitativo de obras brasileiras dentro do catálogo das plataformas, estimulando o crescimento e o aprimoramento da indústria brasileira e o gradual aumento do market share.
3. Connective VoD, de forma compatível com a alíquota aplicada nas demais janelas de exibição e considerando o tamanho e a importância do Brasil nesse mercado. A alíquota da Condecine VoD deve ser um percentual do faturamento das empresas aplicado de forma progressiva.
4. Investimento direto: a previsão de um mecanismo de investimento direto (isenção fiscal) em políticas e ações a partir de diretrizes do Conselho Superior do Cinema, privilegiando as obras brasileiras de produção independente, e deliberações do Comitê Gestor do FSA, como forma de isenção do valor da Condecine VoD. Uma alíquota limite de isenção razoável seria em torno de 10%.
5. Valorização das plataformas de streamings nacionais e independentes e vinculadas aos canais super brasileiros, ou seja, aqueles que foram incentivados na lei da TV paga e que têm obrigação de exibir um número maior de conteúdos nacionais, como Canal Brasil, Canal Curta, Boa Brasil e CineBrasilTv, permitindo assim valorizar a produção brasileira.
Pela importância do setor, pelo tamanho do mercado brasileiro e pelas ameaças em curso, são propostas que precisam ser consideradas. É uma causa nacional.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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