

Opinião
O ataque da malta desvairada
O propósito do bolsonarismo é substituir a civilização pelas regras das sociedades das cavernas


Devemos sempre resistir à impressão de que o mundo está enlouquecendo. Esta é a lição que nos deixa o famoso conto de Machado de Assis, O Alienista. Doutor Simão Bacamarte, depois de encerrar toda a cidade no manicômio – inclusive a sua própria mulher –, acabou por trancar a si mesmo.
Derrotado nas eleições presidenciais, Bolsonaro trancou-se no Palácio da Alvorada e recolheu-se ao silêncio. O autoconfinamento presidencial não impediu, se não estimulou, a epidemia de capota furada que assola seus fanáticos apoiadores. Estacionada à porta do quartel em Brasília, a malta ignara e truculenta ameaçou invadir o edifício-sede da Polícia Federal para libertar um indígena bolsonarista. Repelidos, os baderneiros incendiaram ônibus e automóveis.
Com o propósito de questionar o resultado das eleições e incitar um golpe de Estado, o movimento da malta fascistoide realiza mais uma façanha (ou patranha) típica das hordas sociais que Hannah Arendt chamou de ralé. Mais uma vez, o magnífico projeto iluminista-burguês da liberdade, igualdade e fraternidade está fazendo água. Não podemos colher outro ensinamento das imprecações agressivas dos sequazes de Jair Bolsonaro contra os ministros do STF. Ao apontar sua garrucha velha e enferrujada para Alexandre de Moraes ou Luís Roberto Barroso, Bolsonaro não pretende atingir as pessoas dos ministros, mas sim a instituição STF.
No mesmo diapasão, seus fanáticos, ignaros e ressentidos apoiadores pretextam combater o “comunismo”, mas, na verdade, buscam destruir as instituições que acompanharam a formação do Estado Moderno ao longo de séculos. O propósito é substituir a civilização pelas regras das sociedades das cavernas.
A civilização ocidental, disse Gandhi, teria sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem finalmente estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos. Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva em seu paradoxo: a construção da República dos Bárbaros. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares das consciências toscas, movidas pelo narcisismo dos ressentidos.
Esses deserdados da civilidade simulam retidão moral para praticar as brutalidades dos “homens de bem”. Os direitos individuais e os valores da modernidade são tragados no redemoinho do moralismo particularista e exibicionista dos amorais. O expediente de satanizar o adversário revela indigência mental e despreparo para a convivência democrática. É, portanto, saudável exorcizar as tentações do maniqueísmo, o bem contra o mal.
Os bárbaros repercutem nas redes sociais os impropérios dos líderes truculentos. Manejam com desembaraço a técnica das oposições binárias, método dominante nas modernas ações e interações entre os participantes das redes. Nos comentários da internet, vai “de vento em popa” o que Herbert Marcuse chamou de “automatização psíquica” dos indivíduos. Os processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre grosseiras, corpóreas.
Os indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann, em Behemoth, seu livro clássico sobre o nazismo: “Aquilo contra o que os indivíduos nada podem e que os nega é aquilo em que se convertem”. O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o mal está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades exaltadas. A indignação individualista, a raiva contra os opositores e os arroubos moralistas são expressões da impotência que, não raro, se metamorfoseia em desvario autoritário.
Os bolsonaristas declararam guerra aos demais. Uma declaração de guerra apoiada no pretexto do antipetismo, do anticomunismo e do anticristianismo travestido de pentecostalismo. Eles estão conclamando os aliados e – atenção! – também os adversários para a guerra civil. Esta é a forma que assumem as divergências sociais, quando as regras da convivência pacificada pelo Estado são massacradas pelo retorno à barbárie.
Nas investidas do bolsonarismo, o Estado transforma-se num aparato administrativo desgovernado e despótico, numa caricatura de si mesmo, num butim a ser dilapidado por ocupantes eventuais.
Incapacitado de garantir aos “indivíduos pacificados” proteção diante da turbulência dos bárbaros, o Estado brasileiro amesquinha-se e não consegue cumprir o dever elementar de exercer o monopólio da violência. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O ataque da malta desvairada”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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