Betânia Ramos Schröder

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socióloga, ativista, mãe e autora, residente em Frankfurt. Há vinte anos fora do Brasil trabalhou como cooperante internacional e consultora em países como Alemanha, Angola, Turquia e Bósnia e Herzegovina nas áreas de desenvolvimento local, participação política e reconstrução nacional pós-conflitos armados. Iniciadora da coletânea de ensaios de mulheres afro-brasileiras “O legado de Marielle Franco e as Mulheres Afro-brasileiras da Diáspora em Frankfurt e Mainz”. Membra da Associação BrasilNilê e.V , Coletivo Afrobras: enegrecendo Frankfurt e da diretoria da Pan-African Women’s Empowerment & Liberation Organisation e.V.

Opinião

O assassinato de Moïse Kabagambe, dor negra e migrante

A xenofobia é uma realidade brasileira que não pode ser mais ignorada

Créditos: Reprodução Redes Sociais
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“Mataram meu filho porque ele era preto, africano?”

A dor de Lavy Ivone, mãe de Moïse Kabagambe, é a dor coletiva entranhada, a qual eu transformo em palavras encravadas com a caneta em papel. Digitadas numa máquina, disfarço-me delas, que livres atravessam os mais de 10.000km em impulsos elétricos, digitais a desaguarem no espaço cibernético, onde meu grito se faz possível, neste momento. Não, não guardarei a dor! Ela será lida. Façam dela o que quiserem! Rejeitem-na, ateiem fogo! Mas ela estará livre e fora de mim!

O povo negro é atravessado historicamente por tantas camadas de opressão e por um senso de aniquilamento advindos do racismo antinegro, aliás fatos que já foram postos à mesa exaustivamente. O que fazemos com essa certeza?

A migração, enquanto um fenômeno da mobilidade humana, para corpos negros e racializados como roma e sinti (genericamente conhecidos como ciganos), árabes, judeus, em sociedades predominantemente brancas, de “branco” norma, a migração é um marcador de poder. Um carimbo literalmente recebido, que na sua radicalidade se transmuta em violência e morte pela xenofobia. Nesse sentido, como negar a xenofobia como marca acumulada da violência racial contra o corpo do jovem Moïse, e há dois anos atrás do João Manuel?

A xenofobia precisa ser nomeada, sim! Ela precisa ser olhada na cara, em sua totalidade, nas suas nuances e no seu profundo entrelace com o racismo antinegro!

O amigo Prof. Handerson Joseph, PhD e Professor da Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS, um dos maiores pesquisadores da migração haitiana no mundo, diz numa recente entrevista que a xenofobia “é uma prática de hostilidade contra pessoas consideradas estrangeiras, principalmente aquelas consideradas fora de sua terra. São aquelas pessoas que são vistas como as que não pertencem aquele lugar. Porém a xenofobia não é uma pratica contra todas as pessoas estrangeiras. É seletiva. Pois alguns são considerados bem vindos e outros indesejados. Principalmente aquelas que estão em grupos considerados subalternizados, migrantes pobres, negros, indígenas, etc”.

Os tentáculos do racismo nos transformam numa grande massa de gentes indesejadas. Nos dão pseudônimos, não nomes! Como o jovem Moïse, que era conhecido como “angolano”, quando tinha suas raízes na República Democrática do Congo e não se chamava “Moisés”, assim como o meu filho não se chama Anton, aqui na Alemanha.

Bombeiros trabalham para conter incêndio em casa que abrigava imigrantes bolivianos no Brás, região central paulistana, em 2020. (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Somos diluídos num imaginário de exclusão do mesmo modus operandi do racismo antinegro e da outrização que viramos uma massa de “africanos”, “congoleses”, “senegaleses”, “angolanos”, “haitianos”, “venezuelanos”, “negros”, por exemplo. Enquanto isso, a violência moral e armada mira com tamanha precisão e individualidade certeiras, nossos corpos.

A migração é também um território de fronteiras mortíferas para corpos negros e racializados, sejam nas lonas dos campos de refugiados em inverno, nas águas do Mediterrâneo, nas balas de ódio da extrema direita, no tratamento diferenciado em repartições públicas, polícias, como também nas mãos dos capitães do mato à nossa espreita. O medo branco e nacionalista de que a nossa melanina, a coloração de nossos corpos em suas paisagens, aparentemente uniformes, ameace a quebra da autoimagem cultivada de suas identidades é o sistema de manutenção do “identitarismo branco”, filho da supremacia racial.

Ainda, as estruturas sustentadas por esse “identitarismo” tendem a instrumentalizar nossos irmãos negros embranquecidos, enevoados pelas “brasilianidades”, “alemanidades”, “europeidades”, assim nos empurram na ilusão da integração, por saber que em vez de sermos aceitos, somos tolerados, desde que aculturados e mantenhamos as estruturas de dominação existentes, sem o devido reconhecimento de nossa plena humanidade.

Despeço-me das dores e das palavras, que já me são suficientes em escrita, neste meu primeiro artigo do ano. E trago a voz da querida irmã, professora e iniciadora do Canal Pensar Africanamente Silvany Euclênio: “que essa indignação e busca por justiça pelo jovem congolês Moïse, brutalmente assassinado e torturado, se estenda a todos os corpos negros tombados diariamente neste país. Basta!”.

Silvany tem tanta razão! Suas palavras são um chamado, e atravessam o Atlântico, lembrando-me da agonia de não ver o nome de João Alberto, Menino Miguel, João Pedro, Claudia Silva Ferreira, Amarildo, os mortos da Chacina da Cabula, os tantos mortos da minha terra, silenciados, invisíveis naquela demonstração em Frankfurt que participei há dois anos pelo assassinato de George Floyd e outros mortos pelo racismo no Hemisfério Norte. Basta de injustiças hierarquizadas!

Queremos nossos nomes, sobretudo justiça e reparação, em todos os lugares, enquanto houver tombamento pelo ódio racial e xenofóbico!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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