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O arranjo reacionário

Está refeito o pacto entre os cosmopolitas das finanças e as velhas oligarquias regionais

O arranjo reacionário
O arranjo reacionário
Onde está Wally, ou melhor, Arthur Lira? – Imagem: Aurélio de Figueiredo/Museu da República/RJ
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Sábado, 1° de abril, leio na ­Folha de S.Paulo o artigo de Rodrigo Zaidan, professor na New York University de Xangai. Zaidan avalia os cem primeiros dias do governo Lula: “Resta a pergunta: qual o principal eixo de políticas deste governo? Ainda não sabemos a resposta. Esse é o problema de viver em um país onde candidatos à Presidência não lançam programas robustos, mas sim plataformas ideológicas.

Detalhes importam e, para variar, vamos ver um governo com políticas construídas atabalhoadamente. Se a conjuntura permitir e houver criatividade, sairão políticas decentes. Mas ser governado ao sabor dos ventos macroeconômicos só traz uma certeza: os passageiros saem enjoados.

Se em vez de caçar bodes expiatórios o governo buscar reformar o governo brasileiro para o século 21 (sic), Lula poderá sair de novo como o pai dos pobres. O presidente já deveria ter resolvido a tensão entre populismo econômico e as reformas necessárias à sociedade. O primeiro trimestre já passou. Quando saberemos a resposta?”

Diante de certezas tão peremptórias, resta aos brasileiros lamentar a ausência de Zaidan no comando da economia brasileira. No discurso de posse, Lula asseverou: “Compreendi, desde o início da jornada, que deveria ser candidato por uma frente mais ampla do que o campo político em que me formei, mantendo o firme compromisso com minhas origens. Esta frente se consolidou para impedir o retorno do autoritarismo ao País”.

A mediação democrática sugerida nas linhas e entrelinhas do discurso de posse de Lula sofreu imediatamente o assédio das falanges conservadoras e midiáticas. Matéria da Folha de S.Paulo, edição de 2 de janeiro de 2023, adverte os leitores: “Os discursos de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no domingo (1º de janeiro) foram recebidos com ressalvas por analistas do mercado financeiro, que se preocupam com a expectativa de um governo muito interventor na economia”.

Essas manifestações têm sido repetidas nos cantos e recantos da mídia. São a expressão político-midiática das divergências lógicas e ontológicas, sempre latentes nas sociedades modernas urbano-industriais. No Brasil, essas discrepâncias foram revigoradas pelo avanço do atraso das classes dominantes e de seus seguidores. É isso mesmo, o avanço do atraso. Essas manifestações do retrocesso ocorrem, mesmo depois dos fracassos e tropeções do capitalismo tutelado pelo ideário neoliberal. Em todas as regiões do planeta é intenso o debate crítico que reavalia as concepções e procedimentos das políticas econômicas.

Lula voltou a exercitar a política como vocação e mediação. Mediação entre os dois sistemas de vida que regulam os movimentos nas sociedades capitalistas: as necessidades e aspirações dos cidadãos e os interesses dos senhores que realizam o valor de suas riquezas nas apostas do mercado. Nos subterrâneos desse jogo de mediação rasteja o contraditório entre os interesses contrapostos. Isto exige um exercício permanente de mediação dos governos comprometidos com a soberania popular.

Keynes introduziu na teoria econômica as relações complexas entre estrutura e ação, entre papéis sociais e sua execução pelos indivíduos convencidos de sua autodeterminação, mas, de fato, enredados no movimento das estruturas. Na esteira de Freud, Keynes introduz as configurações subjetivas produzidas pelas interações dos indivíduos no ecúmeno social das “economias de mercado”. A âncora que sustenta precariamente as ariscas subjetividades está lançada nas areias movediças das apostas no futuro. Sempre atormentados pelas incertezas que gravam o amanhã, agarram-se ao corrimão das certezas improváveis. Nesse percurso, o comportamento mimético dá origem, em suas conjecturas imitativas, a situações nas quais a busca coletiva do enriquecimento culmina na decepção de todos.

As discrepâncias foram revigoradas pelo avanço do atraso das classes dominantes e de seus seguidores

Entre vitórias e malogros, convém considerar os processos de abstração real que comandam a vida dos homens e mulheres nas sociedades contemporâneas. As corporeidades, identidades e individualidades estão aglutinadas em um bloco de interesses classistas, visões do mundo, modos de vida, preconceitos, ancestralidades meritocráticas e escravagistas.

As engrenagens impessoais da abstração real e da homogeneização das individualidades são explicitadas nas ignorâncias e grosserias das redes sociais, nos acarpetados escritórios ocupados por mesas de operação das instituições financeiras. Daí espalham suas toscas convicções para outros segmentos da sociedade.

Para essa turma, a eleição de Lula foi a realização do inaceitável. Pouco importa se ganharam muita grana e abasteceram generosamente seus cofres com inúteis e danosas apostas nos mercados de ­derivativos de câmbio e juros, sempre e cada vez mais respondendo aos movimentos dos mercados financeiros globalizados. Com esses ingredientes, está montado, mais uma vez, o arranjo conservador que atormenta o Brasil ao longo de sua história. Nesse pacto juntaram-se os cosmopolitas da finança e dos negócios, uma fração das classes médias – ilustrada, semi-ilustrada e deslustrada –, as velhas oligarquias regionais e a cambada da tripa forra que quer sempre se locupletar sem esforço.

Desde a eclosão da crise da dívida externa dos anos 80 do século passado, esse bloco de poder recuperou seu protagonismo e produziu o “enxugamento” liberal da economia brasileira. Destruíram empresas, amofinaram a indústria, tudo em nome da modernidade e da globalização. Os resultados todos sabem: o desemprego, a deterioração das grandes cidades, a violência, que não para de aumentar, a falência do exercício pelo Estado do monopólio da força.

Na política brasileira, nada mais velho do que o novo. Há um empenho edificante na troca de máscaras, enquanto o rosto do poder real permanece esculpido em sua pétrea solidez. Os disfarces de maior sucesso no momento são con­feccionados por toscas mãos que manejam os teclados e algoritmos das redes sociais. Nos tempos da supremacia da civilidade, os ­Instagrams, Facebooks e Twitters seriam considerados simplesmente fábricas de narcisismo e exibicionismo, mentirosos e grotescos. O grotesco, dizia ­Machado de Assis, é o ridículo tomado a sério. •

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O arranjo reacionário’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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