Opinião

assine e leia

O arcabouço macro

A preservação do poder privado condiciona a eficácia do gasto público

O arcabouço macro
O arcabouço macro
A Revolução Industrial engendrou a separação entre os setores de bens de produção e bens de consumo e um maior uso de máquinas – Imagem: iStockphoto
Apoie Siga-nos no

O “arcabouço fiscal” domina o debate público, sempre ilustrado pelas sabedorias dos economistas e comentaristas da mídia. Diante dos acalorados debates, ocorreu-me a tentação de fazer modestas incursões nas íngremes e escorregadias ladeiras do arcabouço macroeconômico.

John Maynard Keynes e Michael ­Kalecki trombaram com o senso comum. Sustentaram que o crescimento da renda da comunidade, dos lucros empresariais e da receita fiscal depende da disposição de empresários, consumidores, governo ou compradores estrangeiros de realizar um dispêndio superior ao que estão ganhando, isto é, estejam colocando mais dinheiro na economia do que estão tirando. Essa “aceleração” do dispêndio agregado é que vai induzir o crescimento dos lucros, da renda e das receitas tributárias.

O capitalismo é um regime histórico de produção que se desenvolveu a partir da interação virtuosa entre a divisão social do trabalho e a generalização do mercado. Em seu desenvolvimento foram gestadas técnicas e formas de produção, como o sistema automático de máquinas e uso de energia não humana, que o diferenciam radicalmente de outras formações sociais e econômicas. Uma das consequências da generalização do mercado é o assalariamento, ou seja, a livre contratação de trabalhadores mediante o pagamento de salário monetário.

A Revolução Industrial engendrou a separação entre os setores de bens de produção e bens de consumo. A divisão interna do trabalho na manufatura celebrada por Adam Smith suscitou a mecanização das funções e a utilização crescente de máquinas cuja produção “industrializada” promoveu a divisão social do trabalho entre o departamento de bens de produção e o departamento de bens de consumo. A geração de valor e de mais valor, ou seja, a geração da renda e sua distribuição entre lucros e salários, impôs a diferenciação entre os valores de uso adequados à reprodução das classes sociais que contribuem para a criação da riqueza.

Para mobilizar esse aparato produtivo e responder a seus impulsos expansionistas, o capitalismo, em sua dimensão fundamental de economia monetária, incorporou à sua dinâmica o sistema de crédito, outrora dedicado a financiar os desatinos das majestades do Medievo e do Ancien Régime.

Na economia capitalista plenamente constituída, as decisões de gasto nos setores de bens de produção e de meios de consumo são avaliadas pelo sistema de crédito. Para tanto, diante de um certo estado de expectativas a respeito dos rendimentos futuros, os empresários dos dois setores “financiam” nos bancos a aquisição dos meios de produção e a contratação de novos trabalhadores para conquistar lucros acrescentados. Dos salários pagos e dos lucros realizados saem as poupanças privadas que vão liquidar as dívidas ou se juntar ao estoque já existente de riqueza financeira da sociedade.

Assim, as decisões de gasto estão subordinadas às expectativas dos capitalistas. Controladores de riqueza monetária – do sistema bancário em derradeira instância –, os capitalistas dispõem do poder de criar moeda de crédito, incorporando novos títulos de dívida à sua carteira de ativos. No processo de “fechamento” do circuito gasto-utilização da renda, os lucros capturados pelas empresas e a fração da renda não gasta, apropriada pelas famílias, definem o montante da poupança agregada, encarnada em direitos de propriedade (ações) ou títulos de dívida, que possuem a prerrogativa de exercer essas formas jurídicas de “apropriação” e “expropriação” contra os fluxos de rendimentos futuros ou sobre o valor do estoque de capital existente ou em formação.

A aceleração do dispêndio é que induz o aumento dos lucros, da renda e da receita tributária

A poupança tem uma dupla natureza: como fluxo, é um ato negativo, abstenção do consumo; como adição ao estoque de direitos sobre a renda e a riqueza, é uma reivindicação positiva e abstrata à posse da riqueza social. Sua utilização – mediante a aquisição de ativos novos ou existentes, reais ou financeiros – vai necessariamente reconfigurar a situação patrimonial de empresas e famílias. Assim, o fluxo de poupança redefine, na margem, a posição do balanço de empresas, famílias e governos, ou seja, as mudanças patrimoniais decorrentes da acumulação do estoque de passivos e de ativos – direitos e obrigações que incidem sobre a renda e o patrimônio dos agentes privados e públicos.

O sistema monetário, incluído o Banco Central, é incumbido de regular a expansão da moeda de crédito criada a partir dos empréstimos. Esses empréstimos geram depósitos que podem ser mobilizados como meios de pagamento. Não custa repetir: é o gasto que cria a renda, expenditure creates income. O que permite aos empresários e consumidores gastarem acima de sua renda corrente é a existência do crédito. O crédito é uma aposta, uma antecipação, sujeita ao risco de perdas, do valor a ser criado mediante a contratação da força de trabalho e dos meios de produção. Os bancos devem sancionar a aposta dos empresários e dos consumidores, imaginando que os lucros e rendimentos gerados serão suficientes para pagar os empréstimos e ainda produzir um sobrevalor monetário.

Concentrado no aparato dos bancos e demais instituições financeiras, o crédito é riqueza potencial em sua forma mais desenvolvida. Os movimentos de expansão e contração do crédito pertencem à intimidade da dinâmica capitalista e não podem ser entendidos como distorções ou anomalias.

No âmago do debate a respeito do arcabouço fiscal nos deparamos com uma razão oculta, não revelada pela argumentação conservadora: a eficácia dos instrumentos de gasto e de endividamento do Estado está condicionada à preservação do poder privado de comandar a apropriação da riqueza social. Assim, a sustentação da “confiança” dos senhores da riqueza monetária vai definir os limites e os rumos do gasto fiscal e do endividamento público. Neste momento, por exemplo, os senhores da finança consideram insustentável a trajetória do déficit fiscal e da dívida do governo.

Não bastam os sucessivos e repetitivos episódios de socorro prestado pelos Bancos Centrais e Tesouros Nacionais aos náufragos da finança. Tão logo resgatados pela vigorosa intervenção das agências do Estado encarregadas da gestão da moeda, do crédito e das finanças públicas, os senhores dos mercados cuidam de transmutar a garantia pública em poder privado. Invocam, como sempre, as razões indisputáveis da ciência econômica (e quiçá os princípios universais da moral e dos bons costumes) para exigir um ajuste fiscal rigoroso. •

Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O arcabouço macro’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo