

Opinião
O amigo fraterno: uma carta de Mino Carta a Paulo Henrique Amorim
Sem se queixar, escasso instante, ele enfrentou mais de cem processos movidos por inimigos variados do desassombrado espírito crítico


Paulo Henrique, quanta energia alimentava as nossas crenças obviamente inabaláveis naqueles remotos tempos em que Veja nascia. A lembrança é tão precisa que até me parece ouvir a sua gargalhada, a mais contagiante a registrar ao longo da vida, típica de quem não se leva muito a sério. Assim você viverá comigo e muitos outros, entre eles leitores, assistentes, ouvintes, enquanto vivermos, conforme o vaticínio de Voltaire. Muito forte a pegada de Paulo Henrique para que possamos esquecê-la, nem se fale do acima assinado, abençoado por uma amizade fraterna.
Eis o espécime raro, o jornalista autêntico, conta o ocorrido sem omitir as circunstâncias dos acontecimentos, em obediência à verdade factual e ao cumprimento da primeira regra do jornalismo, em proveito da prática do espírito crítico no momento de entender o alcance dos fatos. No Brasil, meu inesquecível amigo nadava contracorrente ao lidar com a realidade com o pensamento voltado para a plateia, a ponto de descurar dos interesses do poder, a começar pelo próprio patrão.
Faz menos de um mês, Paulo Henrique coroou a sua carreira de perseguido ao ser forçado a abandonar a direção do programa Domingo Espetacular, que ancorava na TV Record: deu-se que o bispo Macedo cedesse às pressões do governo Bolsonaro. Creio que este episódio tenha magoado o meu amigo caríssimo, veterano da mudança obrigada de empregadores. Jornalistas autênticos incomodam além da conta.
Falei do profissional, mas penso sobretudo em quem vai fazer muita falta a mim, e muitos mais, inúmeros, por razões distintas, embora sempre válidas. Acima de tudo, vão me faltar as conversas à mesa do jantar, de todo modo nas cercanias de um copo, formas de meditação a dois sobre a vida, o passado e o presente, de cinco anos para cá sobre o País em ruínas. Nunca, porém, fomos colhidos de expressões sombrias, o próprio Paulo Henrique teria cuidado de evitar quedas em depressão.
Era ele um amante da existência, por natureza bem-humorado, o que explica aquela fatídica gargalhada. Sem se queixar por um único, escasso instante, ele enfrentou mais de cem processos movidos por inimigos variados do desassombrado espírito crítico, a flechar mazelas, hipocrisias, mesmo besteiras ciclópicas pronunciadas com solenidade. Ele era analista afiado.
Sobram na minha memória 52 anos de amizade sem falhas, companheiro fiel e leal, sempre presente quando precisei dele, da sua palavra e, frequentemente, daquela risada apaziguante, acompanhada, estivesse ele sentado à mesa, por um tamborilar de dedos a fornecer um fundo musical.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.