Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

O acerto de Lula ao chamar Temer de golpista

O frisson diante da constatação de Lula revela o medo da trupe antipopular que impôs um projeto político derrotado nas urnas.

Jair Bolsonaro e Michel Temer. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Uma das características das democracias modernas é a existência de cláusulas de exclusão da cidadania. Por tempos, foi aceitável excluir da vida política vastos segmentos da sociedade. Negros, pobres, mulheres, analfabetos. Na medida em que ficaram moral e politicamente insustentáveis, muitas destas cláusulas, ao invés de deixarem de existir, assumiram outras formas, sempre com o propósito de manter as estruturas de acumulação e desigualdade.

Já no final do século XVIII, os debates da Convenção Filadélfia caracterizaram o Senado como a casa apta a neutralizar a influência do povo no legislativo estadunidense. Nos EUA, “proteção às minorias” significava, nesta época, a salvaguarda de senhores de escravos e grandes proprietários de terras, temerosos que a maioria empobrecida e negra fizesse valer politicamente a sua superioridade numérica.

No Brasil, a abolição da escravidão ocorreu ao mesmo tempo em que analfabetos foram proibidos de votar e foi derrotada a proposta de reforma agrária que poderia dar condições de trabalho e dignidade aos libertos. Esta massa, alijada de educação formal e trabalho, tornou-se “mão-de-obra livre”, agora recebendo salário para fazer o que já fazia, além de continuar sem poder exercer sua cidadania.

Hoje é difícil encontrar alguém que defenda a exclusão do povo das decisões políticas. Ao menos explicitamente. Ao chamar Temer de golpista, Lula despertou uma reação que serviu para escancarar a versão moderna das exclusões citadas nos parágrafos anteriores. Com alguma ousadia, certo parlamentar chegou a acionar a Advocacia-Geral da União contra o presidente, acusando-o de disseminar desinformação.

Em 2016, Michel Temer afirmou o seguinte: “há muitíssimos meses atrás, eu ainda vice-presidente, lançamos um documento chamado ‘Uma Ponte Para o Futuro’, porque nós verificávamos que seria impossível o governo continuar naquele rumo. E até sugerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento chamado ‘Ponte para o futuro’. E, como isso não deu certo, não houve adoção, instaurou-se um processo que culminou agora com a minha efetivação como Presidência da República”.

Ora, a Constituição diz que o impeachment deve ocorrer em razão do cometimento de crime de responsabilidade. Fora dessa hipótese, é golpe.

As “teses” não adotadas pelo governo de Dilma correspondiam a um programa derrotado nas eleições. Como, então, aplicá-lo sem a anuência do povo? Mediante o afastamento da mandatária sem que tenha cometido crime de responsabilidade, como o próprio Temer e tantos outros parlamentares reconheceram na época. Golpe, portanto.

É bom destacar que o afastamento de Dilma ocorreu em um contexto de sucessivas derrotas eleitorais de um projeto neoliberal que, em 2016, tomou forma na “Ponte para o futuro”. Constatando que não receberia o aval do eleitorado, concluiu-se por não aguardar que o povo passasse a ter simpatia por ele. Surge novamente a cláusula de exclusão da cidadania, rasgando a vontade popular sob a justificativa de que, do ponto de vista formal, o processo de impeachment correu em acordo com todas as suas etapas.

O frisson criado pela declaração de Lula é a prova de que a noção original de “proteção das minorias”, aquela da Convenção da Filadélfia, ainda está viva e forte. Ontem e hoje, o medo do povo é uma constituinte da identidade do grande capital e seus representantes na política parlamentar. Radicalizar a participação popular nas decisões políticas segue sendo nosso desafio para neutralizá-lo. Para isso, denunciar o golpe como medida antipovo é mais do que fundamental.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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