Nunca antes na história deste País a diplomacia atingiu ponto tão baixo

O discurso equivocado, arrogante e agressivo na ONU sela o isolamento do Brasil no cenário internacional

Bolsonaro na ONU (Foto: Johannes EISELE/AFP)

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“Nunca antes na história deste País…” A maneira como Lula começava muitas de suas declarações, frequentemente recebidas com injustificada ironia pela mídia, pode aplicar-se, com sinal trocado, ao discurso do presidente Jair Messias Bolsonaro perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Com efeito, “nunca antes” a diplomacia brasileira havia atingido um ponto tão baixo, tão mesquinho e tão distante da realidade, despertando reações que variaram entre a perplexidade e a chacota, além de justificada preocupação. 

Nunca um discurso conceitualmente tão equivocado foi proferido com um tom tão arrogante e agressivo. As frases entrecortadas, lidas com ênfases incompreensivelmente mal colocadas, soavam como disparos de fuzil, como os que vitimaram Marielle Franco, Ágatha e tantos outros inocentes. Entre os equívocos, talvez o maior seja a noção distorcida de soberania, entendida como uma espécie de “licença para matar” em um determinado território. 

No ordenamento político-jurídico moderno, marcado pela interdependência e a busca, a soberania não pode ser vista de forma independente da responsabilidade para com o próprio povo e para com a humanidade. Pactos como os de direitos humanos ou sobre meio ambiente têm alcance universal, não apenas por representarem a consagração de valores civilizatórios, mas por expressarem a consciência de que o destino dos seres humanos é, ao fim e ao cabo, um só. 

A capacidade de apreender, como poucas outras nações podem fazê-lo, por contingências históricas, essa importante realidade está na raiz da aceitação tácita de uma tradição que faz com que o nosso país seja o primeiro a tomar a palavra no debate geral que abre, do ponto de vista político, esse grande conclave dos povos.

Ao longo dos últimos 70 e poucos anos, ministros e presidentes – e, por vezes, embaixadores especialmente designados – subiram ao pódio da ONU para levar mensagens de paz e conciliação permeadas de propostas sobre desenvolvimento econômico e social, comércio, meio ambiente, desarmamento e tantos outros temas.


Crises financeiras, disputas diplomáticas ou movimentos positivos, como a integração, bem como tensões e mesmo guerras, foram tratados pelos oradores – ultimamente, em geral, os líderes máximos – de um ponto de vista amplo, compatível com o privilégio do primeiro a falar. Mesmo quando foi necessário referir uma situação conflitiva do nosso país com outra nação – o que ocorreu muito raramente e cada vez menos na história recente –, foi feito de forma elegante e sem expressões desnecessariamente agressivas. 

O que se viu na terça-feira 24 de setembro foi um personagem obcecado por ameaças inexistentes, deblaterando contra um pretenso globalismo que afrontaria a nossa soberania. Sim, é nossa responsabilidade soberana tratar da Amazônia. E não abdicaremos dela, como não deveríamos abdicar do nosso petróleo e da nossa tecnologia aeroespacial. Mas, sim, o que ocorre nessa importante região do mundo interessa a todo o planeta.

Ao se colocar contra o consenso praticamente universal sobre a importância da floresta como sumidouro de carbono (fator fundamental nas alterações climáticas), o presidente brasileiro revelou desconhecimento de fatos científicos comprovados. Da mesma forma, ao atacar o socialismo e a ideologia de gênero, demonstrou ser uma espécie de “Dom Quixote do mal” (perdão, Cervantes!), investindo contra moinhos de vento, com sua sanha destruidora. 

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Nos quase 60 anos em que, como estudante interessado em política internacional, como diplomata profissional ou como ministro de Estado, acompanhei nossa atuação (com a provável exceção dos “anos de chumbo”), o Brasil procurou transmitir ao mundo a imagem de um país plural, tolerante, que buscava a paz e o desenvolvimento solidário das nações, mesmo quando a persistência de problemas internos (sobretudo a brutal desigualdade da nossa sociedade) poderia pôr em dúvida alguns desses propósitos. É que uma das características da política externa é justamente espelhar não só a realidade atual, mas aquela que projetamos para o nosso país e para o mundo. 

Permito-me dizer que, nos anos em que servi no governo do presidente Lula, essa imagem se viu reforçada de forma inédita. A melhor síntese desse fato foi uma frase que entreouvi de um diálogo entre dois jovens diplomatas franceses ao entrarem no salão do Conselho Econômico e Social, onde se realizaria uma Cúpula sobre o Combate à Fome e à Pobreza, com a participação do presidente francês Jacques Chirac e o apoio do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Ao observar o recinto repleto de chefes de Estado, reunidos por uma convocação do presidente brasileiro sobre temas tão relevantes, um dos diplomatas expressou sua admiração ao colega: “O Brasil abraça o mundo”. 

Que contraste com a imagem do lobo solitário a atacar líderes de países amigos e valores abraçados pelo conjunto da humanidade, sem uma palavra sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sus-tentável (Agenda 2030), uma espécie de bússola para o futuro próximo, aprovada pelos chefes de governo dos 193 integrantes da ONU. Naquele momento, senti pena dos meus colegas mais novos, muitos deles idealistas – ainda que sem perder o sentido realista inerente à diplomacia –, obrigados, por profissão, a servir a um governo que pode ter muitas caras, mas certamente não a do povo brasileiro.

Não vou me estender sobre os prejuízos econômicos que essa submissão servil à ideologia trumpista (sem os pressupostos econômicos e militares que sustentariam a posição do seu modelo norte-americano) causará inevitavelmente ao Brasil, em particular a setores como o agronegócio, que apoiaram a eleição de Bolsonaro, ou a incoerência entre a saudação ao acordo de livre-comércio com a União Europeia e os ataques a um dos principais líderes do bloco.

Para um diplomata de carreira como eu, que tive, inclusive, o privilégio de subir àquela tribuna, em substituição ocasional aos presidentes sob os quais servi, o que mais dói é ver nosso país ridicularizado e relegado à condição de Estado-pária, que, diferentemente de outros que ganharam, justa ou injustamente, esse qualificativo, foi depositário de tanta confiança e esperança. Que este tempo de trevas passe rápido e que o Brasil se reencontre consigo próprio é tudo o que podemos esperar.

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