Esporte

Novas gerações ignoram Pelé e as antigas só querem lembrar dele em campo

Recluso, silenciou sobre a política e até o futebol. Melhor assim. Calado não produz desastres

Com o uniforme do NY Cosmos. Foto: Bongarts/Getty Images/AFP
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Pelé faz 80 anos em 2020 e taí uma coisa que ele quer ser o primeiro a esquecer. Vive recluso, driblando o olhar público desde que uma malfadada prótese de bacia condenou-o a se alternar entre a muleta, o andador e a cadeira de rodas. Enfrentou também uma cirurgia para retirada de cálculo renal. O atleta não se resigna ao enguiço, exibe desconforto e até mesmo humilhação quando à frente dos outros.

A autoestima muito aguçada reduziu as viagens ao mínimo necessário. Raramente sai de Santos, onde mora com Marcia Aoki, em seu terceiro casamento. Sua ideia de apreço popular cobra dele um razoável tributo à estética. O rosto cada vez mais liso, a testa sem mísera ruga, tudo sugere um Botox na medida. Para o cabelo rigorosamente negro, insiste numa explicação nada convincente. É capaz de jurar que nunca recorreu a pintura alguma, que cada vez que um raro fio branco ou grisalho se imiscui na cabeleira negra ele arranca o indesejável a golpes de pinça. Alguma vaidade há de se esperar de quem, como um imperador romano, trata a si mesmo na terceira pessoa do singular.

Só muito ocasionalmente tem se pronunciado acerca dos transtornos da conjuntura, o que é uma bênção para ele e para a conjuntura. Num momento como este, em que o País é governado por criminosos, a omissão silenciosa de Pelé reforça a certeza de que sua avassaladora popularidade nunca foi posta a serviço da cidadania. Sua frase inolvidável é: “O brasileiro não sabe votar”. Por mais que a gente ceda à tentação de eventualmente concordar com ele, cabe entender as circunstâncias. Se isso é dito quando o País vive um apagão democrático, como fez Pelé, você está legitimando a cassação do voto, por inútil. Hoje, a frase pode configurar um desabafo, a triste constatação de como o eleitor é trapaceado pela mídia, pela desinformação, pelas fake news.

A intimidade com os autocratas nunca o constrangeu, passou batido pela lenta ditadura, sem um murmúrio de contrariedade, em 2013 condenou a irrupção espontânea das ruas e, hoje em dia, quando supostamente prega a tolerância política está na verdade dando um aval ao governo dos intolerantes. A eterna rivalidade com Maradona requenta a comparação que, fora das quatro linhas, o gênio argentino vence de goleada. É o único no mundo capaz de fazer sombra à mística do nosso Pelé. Na verdade, Maradona foi um gênio dos estádios e é, fora deles, um valente militante em favor das causas progressistas. A tatuagem não engana. A tatuagem diz tudo. Marxista, amigo de Fidel e de Chávez, chegou a tatuar um formidável Guevara no braço direito. Suspeita-se que, se vivo, o Che teria Maradona tatuado no braço.

Gênio, vale repetir – Diego Maradona foi um gênio, e é um gênio, no gramado e fora dele, o que, aliás, haja vista nosso simpático Pelé, são capítulos completamente diferentes. Genial e genioso, da estirpe daquele herói problemático a que se refere Györg Lukács, Maradona é o típico personagem da modernidade capitalista, sujeito desajustado, contraditório, inconstante, que encarna, no vigor explosivo da dialética, a essência do herói en conflicto. Risque um fósforo perto dele e a combustão será instantânea. Mas, como raros mestres, ele soube, com sua arte, produzir tanta beleza.

Para quem viu Pelé jogar – desculpem, mas tinha de chegar essa hora –, Maradona fica um degrauzinho abaixo. Habilidade semelhante, talento igual, rapidez e tirocínio de jogo, surpresa mortífera no gingado, fintas infernais, porém, com aquela sua complexão atarracada que lembra um asmático, Dieguito jamais poderia almejar a plenitude plástica do futebol de Pelé, a elasticidade bailarina de pantera faminta de gols do maior de todos os craques. Messi e Cristiano Ronaldo estão a quilômetros de distância.

A inevitável comparação com o outro 10. Foto: AP Photo/Carlo Fumagalli, File

O mais clamoroso paradoxo Pelé acontece onde a proficiência dele devia ser incontestável. Seus comentários sobre o futebol são constrangedores. Mas não há injúria alguma em afirmar que o maior talento do futebol não entende nada de futebol. O que a bola queria dele era intuição e tirocínio. Aliás, ao contrário de Maradona, nunca se aventurou como técnico.

Aposentado em 1974, mudou de ideia um ano depois ao receber um dourado convite do NY Cosmos. Os anos de Nova York revelaram o cidadão do mundo em sua plenitude. Depois de uma despedida dos gramados na qual os americanos esmeraram na sua expertise de espetáculo (e que Caetano Veloso registrou naquele ‘… e Pelé disse love, love, love’), o craque ganhou da Warner, dona do Cosmos, um escritório imponente no Rockefeller Center e circulava pela Manhattan do entretenimento e do dinheiro com a atitude de um executivo de multinacional.

Com o uniforme do NY Cosmos. Foto: Bongarts/Getty Images/AFP

Um repórter brasileiro acompanhou-o para um almoço num restaurante da Rua 47. O ator Robert Redford veio junto. Assim, casualmente. O repórter percebeu que na caminhada de quadra e meia os circunstantes brindavam Pelé com um aceno, um sorriso e mesmo um carinhoso – ‘hi, Pele!’ Nada para Redford. Não tinha a ver com um campeonatinho de popularidade, não. O ídolo do esporte suscitava uma empatia imediata e informal. O astro de Hollywood não produzia a mesma proximidade.

Executivo da Warner, solteiro, idolatrado num país onde o soccer só então começava a ser conhecido, ele vivia um sublime momento sem precisar vestir as chuteiras e enfrentar a pancadaria dos zagueiros adversários. Morava num prédio trendy em endereço elegante, com porteiro 24 horas e piscina coberta. Um fotógrafo amigo da Manchete convenceu-o a mostrar a casa, bem ao estilo da futura revista Caras. Feriu suscetibilidades. No mesmo prédio morava o lateral Carlos Alberto Torres, o capitão do Tri, e a mulher dele, a atriz Terezinha Sodré. O casal se magoou. E convidou os correspondentes para uma festa na cobertura, isto é, na pérgola da tal piscina. Mensagem vingativa; a piscina não era apenas do Rei. Presentes, entre outros, o elegante casal Beckenbauer e o espalhafatoso lateral Marinho Chagas, que foi jogado n’água mesmo bradando que estava sem roupa de baixo.

A era Pelé no Cosmos, na grama e no gabinete, foi um intermezzo de excessos. Craques de montão. Carlos Alberto, por exemplo, que foi indicado para o Cosmos por Pelé, ia de limusine aos jogos e treinos. O estádio ficava fora de Nova York, do lado de lá do Rio Hudson, no estado de Nova Jersey. Curiosamente, depois que Pelé se aposentou, foi sobre o atacante Chinaglia que recaiu o carisma. Um sentimento de amor e deboche, digno de quem era capaz de alternar lances inspirados e jogadas bisonhas. A torcida divertia-se com provocações como “Chinaglia stinks”.

Momentos. Com Xuxa, com quem pensou em casar. Foto: Ralph Gatt/AFP

No Carnaval de 1980, o solteirão deu um tempo no inverno do Hemisfério Norte e surgiu no baile do Municipal ladeado por uma morena deslumbrante e uma loira magnífica. Os fotógrafos se regalam. Descobriu-se que a morena se chamava Luiza Brunet e a loira, Xuxa Meneghel. Com a loira a coisa progrediu. Os amigos próximos temeram que o feitiço viesse dar em casamento. O atleta enamorado tomou a iniciativa de blindar o passado da futura consorte, enquanto prometia a ela incluí-la no casting estrelado de uma agência de modelos de Nova York. Chegou a procurar o editor de Playboy, solicitando que um apimentado ensaio com Xuxa não saísse mais da gaveta. Desacreditando que aquela paixão fosse longe, o editor entregou as cópias e ficou com os originais. O affair não acabou bem. Numa entrevista, Xuxa disse que os pés do atleta eram medonhos, pareciam garras, o Rei perdeu toda a majestade e saiu batendo boca com a ex.

Aquele que dedicara seu 1.000º gol às criancinhas do Brasil teve uma relação geralmente conturbada com as suas. São sete, entre Rose, Assíria e o teste de DNA. Em setembro, ganhou o consolo de ver seu filho Edinho, condenado a 33 anos por tráfico de droga e lavagem de dinheiro, deixar a sinistro presídio de Tremembé. Ganhou o direito a prisão domiciliar. Edinho chegou a se arriscar num terreno onde o pai imperou. Foi goleiro do Santos. Edinho não aguentou o fardo. Muitas vezes é Pelé quem não aguenta.

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