Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Nova chance?

Com Bolsonaro, o que resta da democracia será reduzido a escombros. Lula pode, porém, lançar as bases de um recomeço digno para a nação

O Brasil está em uma encruzilhada, com dois caminhos radicalmente opostos - Imagem: Renato Luiz Ferreira
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Será tarefa difícil, mesmo para os estudiosos do futuro, definir o caráter psicológico ou a fisionomia emocional do presente processo eleitoral. Trata-se de uma mistura complexa e confusa de razões e desrazões, ódios cruzados, temores de todos os tipos, repulsas, rancores, desejos vingativos, ofensas, alguns tiros e escassas esperanças.

O desfecho desse processo não acaba com o resultado das urnas. Se Bolsonaro vencer, o que é menos provável, a dilaceração da sociedade se aprofundará, a divisão cobrirá com um imenso manto cinza a superfície do País. Os sentimentos de vingança, os temores e as dores farão ouvir seus gritos. Os operadores do mercado exultarão embriagados pelo êxtase demoníaco de uma grandiosa perspectiva de lucros com uma economia de mercado sem lei. Não importa se o preço a pagar será a morte da democracia, o salve-se quem puder, as ruas entulhadas de desabrigados.

Diante desta possibilidade, os derrotados teriam de se armar com uma moral abnegada de resistência para agir e reconstruir, visando criar um momento mais propício no futuro. Teriam de encontrar forças para se reerguer sem que ninguém lhes desse a mão. Recomeçar, olhando para os erros do passado, para poder percorrer uma nova estrada, com a ciência de que aquela já percorrida chegou a um fim. Os anos vindouros seriam duros e angustiantes, mas também abertos a possibilidades imprevistas, pois os desatinos dos vitoriosos sempre podem oferecer novas formas de lutas, de saídas surpreendentes. Para isso seria necessário construir novas capacidades, novas combatividades, novas virtudes e novos líderes.

Se Lula vencer, e isto é o mais provável, será mais um recomeço do que um novo início. Não porque Lula ou nós não queiramos. No começo, ao menos, será necessário render-se ao princípio de realidade. A destruição bolsonarista foi vasta e devastadora, tanto na vida material quanto na vida moral, tanto na esfera das instituições quanto nas relações sociais. Será necessário desarmar as bombas de ódio. Será necessário resgatar o espírito nacional de seu extravio, ­reconduzindo-o à racionalidade das diferenças assentada nos conflitos de interesses, de condições de vida e de perspectivas de futuro, e não na destrutiva diferença existencial e pessoal pela qual se odeia e se exclui o outro porque é o outro. O conflito fundado no seu caráter material e social pode e deve existir e proporcionar uma sociedade mais justa e equilibrada. O conflito fundado na repulsa existencial e pessoal é destrutivo e só produz dano e mais injustiça.

Dada a escassez de recursos e a composição do futuro Congresso, o líder petista terá de exercitar à exaustão a arte de negociar

A atual cisão política do Brasil carrega também uma cisão moral e religiosa. Esta será mais difícil de curar. A cisão moral e de valores requer o respeito à diversidade. A cisão religiosa requer o respeito à pluralidade, a busca do ecumenismo. Se Lula vencer, sob o novo governo deve-se, sim, estender a mão, provocar a reconciliação com os divergentes, com os eleitores e eleitoras, com os irmãos e irmãs. Mas não se deve ser ingênuo a ponto de acreditar que os operadores do ódio e da divisão aceitarão qualquer pacificação. Estes terão de ser combatidos e derrotados.

Se Lula vencer, o princípio de realidade imporá um rebaixamento de expectativas nas ações do governo, já decorrente das expectativas rebaixadas durante a campanha. Com efeito, a campanha mirou muito mais o passado do que o futuro. Dada a escassez de recursos e a composição do futuro Congresso, Lula terá de exercitar até à exaustão a arte de negociar, para que os processos social, econômico e político possam adquirir alguma musculatura e um novo sentido. Será menos um programa de grandes transformações e mais um programa de reconstrução nacional e de transição. Mas o governo Lula poderá criar as bases para que haja um novo início no futuro próximo. Este deve ser o propósito das forças políticas e sociais engajadas na perspectiva da transformação do Brasil.

Para isso, as forças democráticas, progressistas e de esquerda precisarão elas próprias se reinventar de alguma forma. O feito até agora, o percorrido até aqui, foi pouco profícuo. As derrotas e as desmobilizações foram significativas. As perspectivas dos privilégios e dos fundos públicos foram mais atrativas do que o duro e humilde trabalho de organização popular. Somente essa força organizada poderá garantir conquistas futuras.

O Brasil está numa encruzilhada, com dois caminhos opostos. A escolha será dramática. O caminho de Bolsonaro leva a um lugar tenebroso: os mais de 600 mil arsenais privados poderão ultrapassar 1 milhão. São um enorme potencial de violência. A destruição da Polícia Federal será aprofundada, como as investidas para transformar as Forças Armadas em serviçais da desordem e da desonra. O aparelhamento do Estado para fins escusos será inaudito. Os tribunais superiores serão atacados e sua composição alterada. O que resta da democracia será reduzido a escombros.

O caminho de Lula leva à recuperação das melhores experiências que o Brasil já teve. Leva ao apaziguamento dos espíritos atormentados. Dá uma nova chance ao Brasil e ao seu sofrido povo. Os melhores valores – o humanismo, a solidariedade, a fraternidade, a liberdade, a justiça, a igualdade e a verdade – serão restaurados como vínculos de uma sociedade de destino comum. A ciência terá sua dignidade restaurada e juntamente com os compromissos será o critério para as decisões governamentais. A inconsequência criminosa da mentira será jogada na lata do lixo. •


*Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e autor de Liderança e Poder (Editora ContraCorrente).

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nova chance?”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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