3ª Turma

Nós vamos aí refletir com vocês

Mais do que desobedecer ao Código de Ética de sua profissão, o magistrado referiu-se às suas colegas de forma sexualizada e violenta.

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Jaime Machado Junior,  desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina,  gravou um vídeo, ao lado do cantor Leonardo, divulgado no dia 24 de março de 2019, mencionando nomes de mulheres magistradas vinculadas ao Poder Judiciário catarinense e afirmando “nós vamos aí comer vocês” e, na sequência, “ele segura e eu como”.

A fala do magistrado causou inúmeras discussões e repercussão judicial e institucional. A Corregedoria Nacional de Justiça apurará a conduta do desembargador, que poderá ser configurada como infração disciplinar. A provocação para a investigação deu-se pela conselheira Iracema Vale, que apresentou manifestação do grupo de trabalho criado pela Resolução CNJ 255, que institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.

Além disso, foi apresentado, igualmente, o ofício da conselheira Maria Tereza Uille Gomes, que sustenta que “o magistrado foi autor de palavras profanas e protagonista de registro audiovisual que avigora a objetivação da mulher e acirra a desigualdade de gênero, o que vai de encontro às políticas de proteção, assistência e combate à violência contra a mulher, que vem sendo desenvolvidas pelo CNJ”.

Após a repercussão, o magistrado gravou novo vídeo, pedindo desculpas na eventualidade de ofensa e justificando seu ato em seu jeito caracterizado como extrovertido.

Poder-se-ia, aqui, restringir-se à questão ética, destacando que o Código de Ética da Magistratura Nacional disciplina, em seu art. 16,  que “o magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral”.

Em tal sentido, estaríamos frente a um questionamento sobre a postura de um profissional, que, em sua vida privada, deve agir em conformidade com a probidade de sua função.

Nesse nível, analisamos o indivíduo em sua atuação restrita, mas podemos também realizar uma observação em um grau maior, em que se tem o que se espera de comportamento do indivíduo que pertence a um conjunto de profissionais específicos – no caso, da magistratura. Mas há outras formas de se pensar sobre esse fato, que fora apontado, também, como uma violência contra as mulheres; e, enquanto tal, reflete na saúde das mulheres.

A Organização Pan-Americana da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), ao tratar da forma de examinar violências contra mulheres, traz a proposta do modelo ecológico, teorizado por Dahlberg e Krug (2002), contemplando quatro níveis de observação, quais sejam os níveis de influência e interação entre as pessoas: social, comunitário, relacional e individual.

O nível individual contempla peculiaridades biológicas e da historicidade dos sujeitos envolvidos; o nível relacional reflete sobre fatores que podem aumentar o risco de ocorrência de violência em razão de relacionamento com outras pessoas, como parceiros afetivos e membros familiares.

O nível comunitário integra contextos do grupo social, com relacionamentos em instituições de ensino e profissão e de convivência maior que os anteriores – a análise de tal nível é interessante para de identificar particularidades desses espaços que reforçam padrões de violência.

Por fim, o nível social prescreve fatores de nível macrossocial que influenciam o fenômeno, como “desigualdade de gênero, sistemas de crenças religiosas ou culturais, normas sociais e políticas econômicas ou sociais que criam ou sustentam lacunas e tensões entre grupos de pessoas” (OPAS/OMS, 2012; Dahlberg & Krug, 2002).

Aí, é possível identificar, em diversos níveis, formas de se relacionar e de se comunicar que podem ser tipificadas como violência.

No desenvolvimento da importância da percepção de determinada violência, há a Teoria das Microagressões, a qual considerará que aquele que comete algum ato violento, vedado ou não pela lei, não necessariamente possui intenção ou mesmo consciência de sua atitude, mas se coaduna com um determinado contexto cultural, social e/familiar em que está inserido.

O prefixo micro, nesse contexto, representa que a violência (agressão) repercute, de início, em nível individual e/ou local, ou “mesmo em situações “privadas” ou limitadas, que permitem certo grau de anonimato por parte do agressor”, contudo, pode ter efeitos nefastos em todo o grupo alvo de tais violências.

As microagressões, assim, são dirigidas a determinada pessoa pertencente a um grupo social, ou, ainda, diretamente a este grupo. Esses grupos geralmente caracterizam-se por serem subrepresentados nos campos políticos e decisórios.

Nessa perspectiva os grupos subrepresentados são relacionados às margens (em referência ao centro decisório) – assim, também são denominados de marginalizados. A compreensão das margens são significa, contudo, apenas distante do centro de referência, mas também em posição no limite de desejabilidade social e de consciência da trama social que interfere em sua vida pessoa e relacional. Assim, determinados grupos às margens podem ser analisados recebendo tratamento de forma negativa (indesejáveis) e / ou em uma situação de estar alheio à sua existência e suas experiências de vida.

Analisados os discursos em que as microagressões se situam, refletem critérios e julgamentos de polos relacionais: marginalidade e/ou uma visão de mundo de inclusão/exclusão; de superioridade / inferioridade; de conveniência/indesejável; ou de normalidade/anormalidade. Vários grupos sociais podem ser listados a partir de tal perspectiva conceitual, como pela orientação sexual (gay / lésbica / bissexual), deficiência, classe (pobreza) e religião (Candomblé, Judaísmo). Segundo Sue, tais grupos geralmente são confinados à beira de um sistema (cultural, social, político e econômico) e podem experimentar exclusão, desigualdade e injustiça social.

Nas relações envolvendo mulheres, tendo em vista que sociedade tornou-se mais consciente do que constitui o sexismo (discriminação de gênero, no prisma binário) e o seu impacto prejudicial sobre essas pessoas, Sue afirma que as formas conscientes, intencionais e deliberadas de preconceito de gênero parecem ter diminuído. No entanto, o sexismo permanece na forma de expressões sutis e não intencionais.

Em tal cenário, a discriminação contra as mulheres (sexismo) também pode operar em um nível consciente ou menos consciente. Os tratamentos desiguais em relação às mulheres pode se manifestar de diversas formas, como por meio de assédio verbal, assédio sexual, abuso físico, práticas de contratação discriminatórias. Ainda, quando empregadas ou na academia, no caso de mulheres submetidas a um ambiente de trabalho hostil, por ser ocupado predominantemente por homens.

As formas sutis de sexismo não se mostram na intenção deliberada de discriminação.  Podem ser praticadas por pessoas (homens e mulheres) que acreditam na igualdade de gênero e nunca discriminam deliberadamente contra as mulheres.

No entanto, essas pessoas inconscientemente praticam  comportamentos que colocam as mulheres em desvantagem, infantilizando-as, estereotipando-as a partir de generalidades infundadas, ou negando-lhes igualdade de acesso e oportunidade.

Além disso, as microagressões de gênero também ocorrem quando da desvalorização das contribuições acadêmicas e laborais das mulheres ou quando da sua objetificação como bens sexuais, reduzindo sua existência a um determinado apelo sexual.

Nesta última hipótese, as mensagens das microagressões são diversas:

  • a aparência de uma mulher como finalidade para o prazer de um homem;
  • as mulheres são fracas, dependentes, e precisam de ajuda; e
  • do corpo de uma mulher não é ela própria.  

Além disso, as microagressões ocorrem no caso de se desconsiderar as realizações das mulheres e limitando o seu impacto e importância na vida social, educacional, emprego e ambientes profissionais .

Diversos exemplos de microagressões são praticadas sem que os seus autores tenham consciência disso e remanescem enquanto ações inofensivas, inocentes ou brincadeira. No entanto, enquanto perduram como tal natureza, restam prejudiciais para as pessoas que recebem tal tratamento, visto que as microagressões podem resultar em consequências psicológicas prejudiciais pessoais e coletivas e criar disparidades individuais e sociais.

Segundo pesquisas, as microagressões podem minar as energias emocionais de destinatários, causar a baixa auto-estima, e promover a diminuição dos esforços que seriam dedicados a produção ou progresso acadêmico ou profissional, em razão do desvio de energia e atenção para a adaptação e resolução dos problemas de forma paliativa.

Destaca-se que os efeitos das microagressões não estão restritos aos seus efeitos psicológicos individuais. As consequências afetam a qualidade de vida e o tipo de vida dos grupos atingidos.

 

Assim, as microagressões possuem um efeito secundário igualmente devastador por impedir igualdade de acesso e oportunidades na educação, emprego e cuidados de saúde. Assim, embora seja concretizado como um ato mínimo, o dano que as microagressões produzem opera em níveis sistêmico e macro.

É importante a reflexão, portanto, sobre determinadas falas e comportamentos que, apesar de não apresentarem a intenção de violência, seus efeitos se caracterizam como tal. Esses efeitos são perceptíveis nas vozes de pessoas – no caso, das mulheres – que, em seu desconforto diante dessas situações, informam que tal forma de comunicação ou de tratamento não lhes é adequada, nem saudável, nem ética.

No caso mencionados, pode-se trazer o questionamento sobre o que simboliza, além da microagressão, a fala de um homem, juiz, referindo-se a suas colegas, igualmente juízas, de forma sexualizada e violenta – o uso de força para submissão.

Mais do que desobedecer ao Código de Ética de sua profissão, também estaria o magistrado intentando confrontar o esforço de várias frentes políticas e científicas que se levantam na ideia de que tais violências agridem as mulheres diretamente relacionadas e reforçam uma ideia nefasta que precisamos superar, que é a da naturalização das agressões contra as mulheres.

As agressões contra as mulheres, em tal espectro, são naturalizada em diversas formas relacionais, sejam familiares, comunitárias, institucionais. A naturalização da violência contra as mulheres representa que tais atos podem ser tolerados ou permitidos, com ou sem justificativa. Em outras palavras, a naturalização significa aceitar que a violência contra as mulheres é permitida, que as coisas são assim mesmo e que não precisamos refletir sobre isso. Mas precisamos.

O que se reflete, nesse ponto, é: estariam as mulheres sendo ouvidas quando evocam tais situações violentas?  Há uma reflexão individual, a partir de quem promoveu tal ato violento; há uma reflexão institucional, sobre posturas de como o ambiente institucional deve ser mantido como um espaço saudável; há uma reflexão comunitária e social sobre a saúde das mulheres, que é afetada diretamente com tais violências? Não havendo posturas reflexivas, pergunta-se, novamente: por quê não?

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