No início da semana, Cris, uma amiga muito querida, enviou uma mensagem a respeito do trabalho. Conversa vai e conversa vem, ela relatou que há alguns dias tem buscado permanecer de pé. Diante de um mal-estar, assim como tudo mundo, temeu a Covid-19, mas não é disso que se trata. Ufa! Ainda bem. Cris está cansada: “Acho que é sinal de esgotamento do corpo. Desde sábado, sinto um desânimo que não consigo explicar. É como se estivessem pressionando a minha cabeça”, disse em um áudio no WhatsApp.
Pedi a ela que, mesmo com todas as demandas, tentasse descansar, desligar um pouco. Não tem sido fácil para a maioria de nós. Das formas mais variadas, enquanto mulheres, estamos sendo duramente impactadas pela pandemia que, infelizmente, completa um ano sem qualquer sinal de ter fim. Muito pelo contrário, vivemos o pior momento da política de morte e de desprezo pela vida.
Nesse ano que passou, nós, mulheres, fomos as mais atingidas no mercado de trabalho. Fomos nós, também, que vimos os afazeres domésticos e as atividades de cuidado se multiplicarem, além de sermos ainda mais vitimadas pela violência. De acordo com o relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre janeiro e julho de 2020, 648 brasileiras perderam a vida em decorrência de feminicídios. Desse total, 73% eram negras.
Ao falar de mulheres, é fundamental fazer um recorte de raça, gênero e classe. Desse modo, quando pensamos nos dados relacionados às afro-brasileiras, a dureza da pandemia é ainda maior. Como eu já disse em outras oportunidades, é muito simbólico que a primeira vítima do novo coronavírus tenha sido uma mulher negra e trabalhadora doméstica, profissão que mais se aproxima do nosso passado escravocrata. O binômio racismo e pobreza faz com que o vírus seja mais letal entre elas. Além disso, o desmanche e a ausência de políticas públicas de combate às desigualdades e de distribuição de renda colocam essas mulheres cada vez mais perto da fome.
Ao despedir da Cris, disse a ela que caso precisasse de algo, estaria à disposição. Disse também que falar, desabafar, é sempre bom. Pedi que não ficasse em silêncio diante das dificuldades. Nesse sentido, faço da coluna de hoje um espaço de desabafo. Nós, mulheres, estamos cansadas.
Atualmente, o Brasil ostenta o título de epicentro mundial da pandemia e não há sinais de reversão desse quadro. Estamos cansadas.
Diante da alta de mortes e da dor que nos invade, não merecemos ouvir “E daí?! A vida continua!”. Estamos cansadas.
Até o momento, pouco mais de 5% da população foi imunizada. Não há uma política de vacinação que mereça esse nome. Estamos cansadas.
Estudos comprovam que ivermectina, hidroxicloroquina e azitromicina não têm eficácia no combate à Covid. Ainda assim, de forma criminosa, gestores públicos seguem defendendo o “tratamento precoce e preventivo”. Estamos cansadas.
O modelo machista e patriarcal da sociedade brasileira nos sobrecarrega imensamente, uma vez que há o entendimento que os afazeres domésticos e o cuidado com os filhos são de nossa inteira responsabilidade. Estamos cansadas.
A violência machista, racista e patriarcal, que cresce cada dia mais, é um fantasma que nos assombra diariamente. Estamos cansadas.
Os programas de combate às desigualdades de gênero estão sendo destruídos de forma avassaladora. Em reunião recente, o Brasil não assumiu compromisso em defesa das mulheres na ONU. Estamos cansadas.
No supermercado, os preços estão pela hora da morte. A carestia tem impedido que muitas de nós consigamos fazer ao menos três refeições diárias. Estamos cansadas.
Segundo o IBGE, a taxa de desemprego entre as mulheres é 39% superior à dos homens. Estamos cansadas.
Não há qualquer medida para diminuir a lotação de ônibus e metrôs, o que coloca nossa vida e de nossas famílias em risco. Estamos cansadas.
As reuniões infindáveis via Google Meet e demais plataformas de comunicação nos consomem. Estamos cansadas.
Com a pandemia, a ideia de horário de trabalho simplesmente deixou de existir. Há quem se ache no direito de enviar mensagens antes das 8h e depois das 21h, como também nos finais de semana. Estamos cansadas.
Não há qualquer movimento ou ação que vise a mitigar as desigualdades educacionais provocadas pela pandemia. A trajetória de crianças e jovens que acessam o ensino público está seriamente ameaçada. Estamos cansadas.
Onde já houve futuro, há apenas incerteza, medo e desalento. Estamos cansadas.
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