Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

No mês da mulher negra, uma lembrança da menina que fui

É preciso olhar e cuidar da criança que existe em nós, pois certamente ela irá nos ajudar a perceber os fantasmas que ainda nos assombram

Créditos: Arquivo pessoal
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Na última terça-feira, estive no XVI Fórum Internacional de Educação de Venâncio Aires, cidade que fica a 130 km de Porto Alegre. Em uma noite gelada do inverno gaúcho, fui surpreendida com a presença de 800 educadores da Rede Municipal. Impactada, ao microfone, disse: “Estou muito feliz, estou emocionada, estou nervosa. Se eu soubesse que tinha tanta gente, não teria vindo!”. Foi o suficiente para que gargalhadas tomassem conta do auditório. Assim começou a noite que irá marcar minha vida por todo o sempre.

Levando-se em consideração as violências, as desigualdades, os abismos provocados pelo racismo, partilhar reflexões e propostas para a promoção de uma educação antirracista com tantos professores me enche de orgulho e esperança, uma vez que os dados são aterradores. Pesquisa divulgada recentemente pelo Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, revelou que 62% das crianças fora da escola são negras. Mais do que nunca, e de maneira urgente, é preciso fazer frente aos mecanismos que têm impedido o ingresso, a permanência e o sucesso da população negra nas salas de aula.

No encontro promovido pela Secretaria Municipal de Educação de Venâncio Aires, ouvi relatos emocionados das práticas e ações pedagógicas realizadas para que as instituições de ensino sejam um espaço de realização para crianças e jovens negros, como também dos passos que ainda precisam ser dados, o que me faz lembrar dos versos de Milton Nascimento: “Se muito vale o já feito, mais vale o que será / E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir”.

Num município em que negros representam cerca de 5% da população, segundo dados do IBGE, foi muito bonito, marcante, ver educadoras negras de posse do microfone, relatando suas trajetórias, “tomando a palavra”, conforme pontuou a psicanalista Neusa Santos Souza. E foi justamente uma professora negra que trouxe uma indagação que me fez pensar na mulher que sou e na menina que fui. Enquanto autografava exemplares de Outra educação é possível, livro que lancei em 2018, ela me disse: “Quando você for aplaudida, ao invés de gesticular o ‘não’, receba o elogio. Você merece!”.

De fato, fui aplaudida de pé em três ocasiões. Em todas elas, usei o dedo indicador para dizer que não havia necessidade, motivo para tantas palmas. Na volta para casa, questionei: “Em que momento aprendi a recusar, negar elogios?”. As palavras da professora, somadas aos meus questionamentos, levaram-me até a menina Luana, à criança negra que fui, que muito cedo aprendeu a esconder suas habilidades, assim como acontece no processo de socialização e construção da identidade de meninas e meninos negros. O racismo nos empurra para o lugar da solidão e do silêncio. Nesse processo de reflexão, voltei aos cinco anos de idade, quando aprendi a ler.

Luana Tolentino durante XVI Fórum Internacional de Educação de Venâncio Aires. Foto: Divulgação

Estava no antigo pré-primário, aprendendo as primeiras letras. Após distribuir um texto adaptado da obra de Monteiro Lobato, que mesmo com passagens extremamente racistas serviu de instrumento para alfabetizar crianças de todo o País, minha professora pediu à turma que iniciasse a leitura em voz alta. Logo na primeira frase, percebi que a minha ecoava pela sala, ofuscando as demais. Desejava com muito ardor conhecer as palavras, ser, saber.

Li tudo. Fiz as pausas necessárias entre um parágrafo e outro. Respeitei a pontuação. À medida que lia, torcia para que o texto não tivesse fim. Não acreditava no que estava acontecendo. Era como se um mundo, um portal se abrisse diante dos meus olhos. Foi algo tão marcante que, passadas mais de três décadas, lembro da última frase do texto: “Que perigo!”. Embora tenha apenas três letras, “que” era uma palavra muito difícil para quem estava aprendendo a ler. Eu li. Eu consegui. Li com a entonação que uma frase terminada com ponto de exclamação exige. Enquanto escrevo, sou capaz de ouvir as palavras da minha professora ao final da leitura: “Parabéns, Luana! Você brilhou!”.

Os olhares da turma se voltaram para mim. Meus colegas me olhavam como se algo de errado tivesse acontecido. Olhavam como se o direito de ler e ser elogiada pela nossa professora não fosse extensivo a mim. Era como se eu tivesse transgredido uma regra. Senti um pouco de medo. Meu coração batia forte. Os olhares de reprovação ofuscaram a minha alegria, o meu entusiasmo. Fiquei em silêncio. Não consegui sorrir diante do reconhecimento da minha professora. Um momento de descoberta, de felicidade, transformou-se em um episódio de incômodo, insegurança e apreensão. Na sala de aula, aprendi a recusar, a dizer não aos elogios.

Infelizmente, o que aconteceu com a menina Luana é muito comum nas trajetórias das crianças negras. Somos educadas para não expressar nossos desejos, nossos sonhos, nossas potencialidades, para não sentir orgulho de quem realmente somos. Muito pelo contrário: em razão do racismo, somos ensinados a sentir vergonha de nós mesmos. É como se não tivéssemos autorização para acessar aquilo que às pessoas brancas é tido como algo natural, como a inteligência, a beleza, os afetos, os direitos, as oportunidades. Causa-me espanto pensar que, aos cinco anos, eu já tinha consciência disso, daí a minha apreensão, a minha angústia por mostrar para minha turma que eu era uma boa aluna, que tinha aprendido as palavras antes dos demais.

Neste mês de julho, em que se comemora o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, é preciso olhar, cuidar da criança que existe em nós, pois certamente ela irá nos ajudar a perceber os fantasmas que ainda nos assombram, além de auxiliar a encontrar o caminho da cura, o que é fundamental para vivermos com plenitude, para enfrentarmos os obstáculos, resistirmos às opressões que recaem sobre nós cotidianamente.

Depois de ouvir o conselho da professora de Venâncio Aires, prometi que jamais esqueceria das palavras que ela me disse. De hoje em diante, recebo, acolho com carinho e gratidão todos os aplausos e elogios. Depois de tudo que passei, que vivi, que enfrentei, mereço todos eles.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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