Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

No meio do caminho tinha um golpe

‘Meu pai havia contado que os militares estavam preparando uma revolução para derrubar o presidente da República que, diziam, era comunista

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Tinha eu 14 anos de idade quando acordei assustado e espiei pela janela retangular da Rural Willys do meu pai aqueles tanques verde-oliva em comboio na estrada rumo ao Planalto Central do Brasil.

Íamos no sentido contrário, voltando para Belo Horizonte, depois de uma longa temporada na capital federal. A estrada não era ainda duplicada e aqueles tanques enormes passavam raspando na Rural Willys novinha em folha, provocando um frio na barriga do meu pai que tinha 24 prestações pela frente.

Havia um cheiro forte de diesel no ar. Fechei a janela e encostei a cabeça num travesseiro de paina que carregava comigo desde criança. O meu pai não dizia nada, fitava aquelas retas infindáveis, pensativo. Minha mãe dormia, meus irmãos comiam biscoito de polvilho e tomavam Guaraná Champagne Antarctica em garrafinhas de vidro.

Tupi, o nosso vira-lata, cochilava no formato de uma rosquinha no bagageiro, em cima de meia dúzia de malas Ika.

Meu pai havia contado, num jantar em casa, que os militares estavam preparando uma revolução para derrubar o presidente da República que, diziam, era comunista. Eu ouvi atento e chateado porque gostava do presidente e sabia de cor a música de sua campanha: É Jango/É Jango/É Jango Goulart!

Comunista pra mim era Fidel Castro, em Cuba, e Nikita Khrushchov, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS.

Voltávamos para Belo Horizonte para viver nosso velho normal. Ir ao Mercado Central todos os domingos para comprar as frutas e verduras da semana, queijo da Canastra e goiabada cascão.

Enquanto meu pai assistia a missa ali no mercado, eu e meu irmão ficávamos no corredor onde vendiam passarinhos, cachorros, coelhos, pombos, gansos, galinhas da Angola, todo tipo de bicho. O meu pai saia da missa comungado, feliz da vida de encher o balaio de comida pra toda família, agradecendo a Deus por tanta fartura.

A última coisa que comprava era um frango vivo no Aviário Modelo, com os pés amarrados num barbante, embrulhado numa folha do Estado de Minas, deixando para fora apenas a cabeça com o bico aberto de sede e pavor.

Tudo isso passava na minha cabeça, enquanto os tanques sumiam no horizonte da estrada. Em alguns postos que paramos no meio do caminho havia soldados armados vigiando as bombas, autorizando a compra de um volume restrito de gasolina. O meu pai tinha medo de não conseguir chegar a Belo Horizonte por falta de combustível, mas minha mãe o acalmava dizendo fica tranquilo filhinho, Deus é grande!

Foi uma viagem longa, durou mais do que as doze horas que costumava durar. Da matula que minha mãe havia preparado dentro de uma caixa de isopor, sobrou apenas algumas bananas que ficaram com a casca preta pelo gelo que ela espalhou para não azedar os sanduiches de mortadela e gelar as garrafinhas de Guaraná Champagne Antarctica.

A paisagem era monótona e dava sono. De tempos em tempos, minha mãe perguntava pro meu pai: ‘Tá acordado, filhinho?’. Ele ria e respondia se divertindo: ‘Não, filhinha, estou dirigindo dormindo’.

A ficha só caiu quando chegamos a Belo Horizonte. Não era revolução, era golpe. O meu pai estacionou a Rural Willys e a primeira coisa que fez no dia seguinte, bem cedo, foi arrancar o adesivo plástico JK65 que estava no vidro de trás. No adesivo, Nonô sorria e, ao fundo, víamos as curvas do Palácio da Alvorada desenhadas por Oscar Niemeyer.

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