Roberto Amaral

robertoamaral@cartcapital.com.br

Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

No fim do poço, outro poço

Quem conservar um mínimo de juízo não deve reduzir a mera coincidência o encontro da violência contra Glauber Braga com a anistia disfarçada de ‘dosimetria’

No fim do poço, outro poço
No fim do poço, outro poço
Deputado Glauber Braga (PSOL) celebra a decisão da Câmara de não cassar o seu mandato. Punição escolhida foi a suspensão. Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados
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“Cuidemos. A República pode afundar.”

Manuel Domingos Neto

Sinal dos tristes tempos de hoje: devemos comemorar a suspensão (seis meses) decretada pelo plenário da Câmara Federal, na última quarta-feira 10, do mandato do deputado Glauber Braga – agredido por gendarmes da polícia legislativa, na véspera, por ordem do presidente da Casa.

As hosanas são bem-vindas, pois o corretivo previamente decidido pela direita era a pura e simples cassação do mandato do parlamentar fluminense, cumulada com oito anos de inelegibilidade, ou seja, sua virtual expulsão da vida pública, que ele tanto dignifica. Antes, por artes e artifícios de Arthur Lira – dublê de feiticeiro e capo –, Glauber foi levado (março deste ano) ao Conselho de Ética da CF, onde não ouviu uma só acusação digna de respeito, mas teve a perda de seu mandato indicada. A reunião do Conselho de Ética era um teatrinho, como deveria ser o julgamento em Plenário, montados um e outro com script pré-definido para atender formalidades regimentais destinadas a sancionar um julgamento de sentença previamente lavrada e conhecida por gregos e troianos. Uma vindita da direita, maquinada no melhor estilo siciliano. Não faltou, sequer, Don Corleone. O pretexto arguido, à falta de coisa melhor, era um pontapé, aliás muito bem dado por Glauber, em canalha assalariado pela direita para azucriná-lo com ofensas à sua mãe, naquele então no leito de morte. O pontapé merecido foi o pretexto alegado, pois o que se pretendia, claramente, o que está evidente nos discursos da direita no Conselho de Ética e no Plenário, é o que os deputados do PL chamarão, aliás, com propriedade, de “conjunto da obra”: o exemplar mandato de Glauber como deputado socialista. Mandato bravo, corajoso, limpo, condenando a miséria do sistema, mas condenando também a vigarice larvar, como a invenção do “orçamento secreto”, peça de corrupção explícita, engendrada pelo deputado Arthur Lira – por isso mesmo seu arqui-inimigo, à frente e atrás dos panos regente da orquestra que alimentava a fogueira da inquisição parlamentar.

Mas é preciso ver, em Glauber, um alvo-símbolo, escolhido a dedo pela direita. A vindita contra seu mandato visa a constranger o conjunto da esquerda socialista, e assim é que deve ser vista e enfrentada. Longe de mero acaso, é significativo que, na mesma sessão que o condenou, o plenário da CF tenha absolvido a delinquente Carla Zambelli, ainda deputada por São Paulo (do PL, evidentemente), já condenada pelo STF a 15 anos de prisão, pelos crimes de invasão do sistema eletrônico do Conselho Nacional de Justiça e porte ilegal de arma de fogo. Homiziou-se na Itália, onde está presa e aguarda extradição. Imunes e impunes, como ela, permanece outros “fora-da-lei”. É o caso do policial Edmundo Ramagem (também deputado pelo PL…), condenado pelo STF como ativo personagem na trama golpista. Acoitou-se nos EUA. Faz-lhe companhia o deputado Eduardo Bolsonaro (PL…), conspirando desde fevereiro deste ano contra os interesses nacionais. Ele mesmo proclamou sua participação em lobby visando a pressionar a inamistosa Casa Branca a estabelecer sanções contra autoridades brasileiras e às exportações de nossos produtos para os EUA. O “tarifaço Trump”. Crime de lesa-pátria. Impune.

Quem conservar um mínimo de juízo não deve reduzir a mera coincidência o encontro da violência contra o deputado fluminense com a anistia disfarçada de “dosimetria”.

Na mesma noite em que Glauber Braga era agredido, a mesma Câmara aprovava uma insólita, inaceitável e espúria redução geral de penas que pode ser o caminho que nos levará à iniquidade da anistia aos delinquentes da intentona de janeiro de 2023. Mais uma ameaça à democracia. Mais uma negociata transada entre costureiros da pequena política, senhores de poder em Congresso que se requinta no reacionarismo, em sua deslealdade contra a República e no desapreço à democracia, esquecido de que, sempre que o edifício democrático é demolido, seus destroços vão abater a vida parlamentar. Lembrai-vos de 1937.

A aprovação da proposta de anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023, que entrou na pauta da CF com o codinome de “dosimetria”, apacientando o centrão e recolocando-o no redil da extrema-direita, foi o preço pago pela República à chantagem explícita da autocandidatura do filho do capitão. Foi traficada por Hugo Motta, o delfim de Lira, sucessor político de Eduardo Cunha. E no SF, onde já está o projeto aprovado pela CF — correu célere —, o relator da matéria, filhote da ditadura, braços dados com o inefável deputado Paulinho da Força, já anunciou não descartar uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. Será a reabilitação do golpismo, a pá de cal na ideia de responsabilidade democrática ensejada pelos julgamentos do STF, o anúncio da bolsonarização da política, a nos dizer que o fim do poço é outro poço.

No mesmo passo em que a CF levava a cabo esta deslealdade contra a República, o Senado Federal, ali ao lado, aprovava, em dois turnos, a PEC que limita os direitos dos povos originários a áreas ocupadas ou em litígio até a data da promulgação da Constituição de 1988. Vitória do riquíssimo lobby do insaciável agronegócio, que se mistura com grilagem de terras, depredação ambiental e mineração criminosa, como locatários da Faria Lima que se misturam com a superestrutura legal do ilegal Comando Vermelho.

Como lembra meu amigo Fernando Mousinho, o “8 de Janeiro” não terminou. Mas o ciclo de golpes de Estado vem de antes, e se inaugura com o impeachment de Dilma e chega até aqui, com o interregno propiciado pela eleição de Lula. São os golpes dentro das “quatro linhas”, ou seja, operados dentro do poder, não apenas pelo Executivo, mas já sem o comando da caserna (1954), sem sua preeminência: golpe do parlamentarismo em 1961 e o golpe inaugural do atual ciclo (a queda de Dilma Rousseff). As forças armadas, porém, logo voltariam a intervir na vida política, decidindo o processo eleitoral a favor do capitão Bolsonaro, quando se inaugura o novo ciclo dentro do ciclo aberto em 2015. O ministro do Exército, gal. Vilas-Boas, intima o STF a não conceder habeas corpus preventivo requerido pela defesa de Lula, e assim o ex-presidente, líder nas pesquisas de intenção de votos, é impedido de concorrer às eleições presidenciais de 2018. O que se segue é história sabida e sofrida. A intentona de 2023 faz parte do mesmo processo, sem haver alterado a natureza do ciclo, representando sua insurgência fascista. Nada obstante a eleição de Lula em 2022 e a resistência de seu governo, vivemos até aqui sob o mesmo ciclo de golpes de Estado continuado, sob a regência de uma maioria parlamentar empenhada na erosão da democracia que sobreviveu à intentona: uma malta associada ao que há de mais atrasado no país.

O episódio Glauber Braga, cujo mandato vem sendo ameaçado de cassação desde Arthur Lira, se insere na política geral de domínio da vida congressual pela extrema-direita, e uma de suas táticas são os entraves ao governo Lula e a perseguição política aos quadros de esquerda. Ela se opera por todos os meios, a começar pela captura do Orçamento da União, que cerceia a ação do Executivo e pulveriza até à inutilidade os recursos públicos. Esta prática ilícita e constitucionalmente vetada consolidou-se como mecanismo de distribuição de emendas individuais, de bancada e “emendas de relator remodeladas” de execução impossível de ser acompanhadas. Seu objetivo, até aqui alcançado, é o financiamento da renovação de mandatos parlamentares.

Vejamos a apropriação do orçamento de 2025. Ao governo federal foram alocados como despesas não obrigatórias, aquelas sobre cuja aplicação pode decidir, 170,7 bilhões de reais, enquanto as emendas parlamentares, impositivas (aquelas que o governo é obrigado a liberar e são destinadas aos redutos parlamentares), somam 50,4 bilhões de reais. Não para aí, porque os parlamentares ainda podem ter acesso aos recursos do Fundo Partidário, que neste ano somam 1,319 bilhão. Em ano eleitoral, há ainda à disposição dos parlamentares e dos partidos o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas. Em 2004 somava 4,962 bilhões de reais. Quanto será sua dotação nas eleições quase gerais de 2026?

Por fim, e não é pouco, a maioria congressual de direita procura intimidar o STF com ameaças de redução de sua competência constitucional e com a abertura de processos de impeachment contra seus juízes. No Senado Federal, seu presidente já se considera ator no processo histórico e, dentre outras traquinagens de aprendiz de feiticeiro, tenta interferir na indicação do novo ministro do STF, prerrogativa que a Constituição ainda vigente reserva ao presidente da República. Se diz amuado. Com maioria absoluta no Senado e na Câmara, a direita deixa claro que pode, nos limites de sua pura vontade, interromper qualquer programa de governo; e pode mais, porque pode depor o presidente, sem pesquisar “firulas jurídicas”. Para tal ofício pululam no mercado juristas como Miguel Reale Filho, e “paus para toda obra” do talhe de Eduardo Cunha. Dilma bem que poderia nos ajudar, escrevendo suas memórias.

Mulher de César – A modernidade remete a César uma frase que ele não ditou (o conteúdo atribui-se a Plutarco e Suetônio) e a versão latina, não fixada, chega aos nossos dias e ao vernáculo como: “Para a mulher de César não basta ser séria; é preciso parecer séria.” Sabidamente, há outras versões. O conteúdo do aforismo é ético, mas é profundamente político, impondo uma regra: das instituições, como dos servidores públicos — governantes, legisladores, juízes, ministros, diplomatas, militares etc. — a sociedade exige que, além de exercerem suas funções com competência e decoro, deveres de ofício, fujam de situações que possam sugerir suspeitas. A obediência cobra-se do Congresso, e se deve cobrar de igual modo do Poder Executivo e do Poder Judiciário, e mais ainda do STF, que exerce, como agora, papel tão proeminente na defesa da República e da democracia. O ministro Dias Toffoli, porém, rejeita essa compreensão e foge desse dever. A sociedade e seus pares esperam que possa explicar o que estava fazendo no jatinho particular que o levou a Lima para a final do Palmeiras na Libertadores, na companhia de advogado que atua no STF como patrono de interesses do Banco Master.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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