Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

No espelho de Gaza

Conflito entre israelenses e palestinos atravessa o Brasil desde o primeiro dia e nos coloca diante dos ‘crimes de guerra’ que toleramos aqui

Um homem carrega um bebê palestino até o Hospital Al-Shifa, em Gaza, em 11 de outubro. Foto: Mohammed Abed/AFP
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Não tenho memória de quando uma guerra de outro continente entrou tão forte no Brasil, como o embate entre Israel e os radicais palestinos. No primeiro dia do conflito, em 7 de outubro, um ataque terrorista do movimento Hamas aconteceu justamente dentro de um evento, que contou com o suporte da festa brasileira Universo Paralelo. Só esse fato já faz com que a guerra entre Israel e radicais palestinos reverbere de maneira intensa por aqui. Vítimas brasileiras entre os 260 mortos desse primeiro dia, outros cidadãos em zonas de risco à espera de voltar até hoje, e a diplomacia brasileira vendo-se num papel ativo à espera da resolução do conflito. 

Seria presunçoso entrar na análise específica desse conflito, e há inúmeros especialistas na região falando a respeito. Daqui, só é possível partilhar as percepções que transcendem o conflito, e batem de frente com o nosso ethos social. Depois de mais de 10 dias de conflito, o único consenso global é que a explosão de um hospital em Gaza, que matou 500 civis, é um crime de guerra inadmissível para o que nos resta em termos de sentimento humano. O pedido de cessar-fogo ganha sentido nesse contexto, mas o mundo hoje assiste à obscuridade dos homens em estado bruto.

Não deveríamos estar sendo submetidos a este horrendo espetáculo, passados apenas alguns meses do fim da pandemia de Covid-19. Mas cá estamos, diante de mais um episódio que testa nossos princípios, e com mais um Fla-Flu em curso para acusar israelenses e palestinos (a depender da cor política do interlocutor) por esta imensa barbárie.

Nos chocamos com a truculência e violência crua de terroristas do Hamas, tanto quanto a estratégia aplicada por Israel de sufocar Gaza. De lado a lado, partem críticas. Para uns, é inadmissível o que chamamos de genocídio palestino praticado por Israel, e o desprezo dessa nação pela vida de crianças palestinas. Outros, condenam de modo veemente a tortura praticada pelo Hamas, o anúncio dos estupros coletivos das mulheres capturadas pelos terroristas, entre outras variações da selvageria.

Triste constatar que todos esses elementos de guerra estão presentes no nosso Brasil, ainda que em escala menor. Chamamos de genocídio toda ação para exterminar um povo, uma nação, uma etnia, uma raça. Infelizmente, é um termo que existe no dicionário, na vivência atual brasileira, em nossos livros de história — e nos que ainda virão. Nos horrorizamos vendo o crime do vizinho, e não reconhecemos como o Brasil pratica também o genocídio contra os povos originários, por exemplo. A interrupção de fornecimento de programas de saúde para áreas indígenas era uma realidade no Brasil até o ano passado. Indígenas morrendo de fome, contaminados pelo mercúrio de garimpeiros, estupros praticados contra adolescentes.

A cada linha que lemos, ou a cada cena que vemos, mais se percebe o peso do atraso civilizatório do Brasil

O que é isso se não tortura e um projeto de genocídio? Como classificar a tortura da polícia nas periferias do país? A tortura praticada até por gerentes de supermercado contra algum desafortunado pego escondendo um quilo de carne. As centenas de crianças executadas por balas perdidas nas favelas deveriam  nos chocar tanto quanto as execuções de crianças em nome de um ‘bem maior’ proposto por Israel.

Vemos o horror do outro lado do mundo sem dar a gravidade devida quando isso acontece em nosso quintal, sem nos indignarmos à altura de um evento dessa natureza. Assassinar crianças é a falência de um Estado. 

A cada linha que lemos sobre o conflito em Gaza, ou a cada cena que vemos sobre o assunto, mais se percebe o peso do atraso civilizatório do Brasil. Vivemos crimes de guerra no Brasil diariamente. De uma maneira mais grave. Sem considerá-los como tal. 

Outro fato recente aproxima o Brasil do conflito no Oriente Médio. O líder de extrema direita Benjamin Netanyahu tem laços fortes com a extrema-direita brasileira. Qual líder mundial passou quatro dias no Brasil à espera da posse de um presidente? Netanyahu o fez, passeando nas praias do Rio de Janeiro, à espera de uma reunião com Jair Bolsonaro, e para prestigiar sua posse.

Antes do conflito estourar, Israel vivia um pesadelo com todos os elementos que tentam importar para o Brasil. Uma reforma da Corte Suprema para que os juízes não possam contestar decisões do governo. Conchavos com políticos ultraortodoxos que ignoram os avanços sociais e partem para soluções radicais, como o cerco a Gaza, em nome de um ideal supostamente divino.

A religião e a crença de que um grupo é moralmente superior a outro semeia guerras desumanas que degradam nossa existência e trazem retrocesso para uma população inteira. Isso era algo lateral no Brasil até bem pouco tempo atrás. Hoje, nos vemos no fio da navalha, caminhando devagar para evitar os embates entre Congresso e Judiciário. Deputados e senadores fazem planos de limitar o STF aqui também, sem mesmo perguntar à população se está de acordo. 

Em algum momento, perdemos o rumo da história. Precisamos reencontrar a saída para avançar em nosso pacto civilizatório. Não temos como escapar dessa reflexão diante de uma guerra como a atual. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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