Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

No Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a genialidade de Stella do Patrocínio

Assim como muitas escritoras negras, a obra e o legado de Stella do Patrocínio ainda são pouco lembrados nos planos de ensino de Literatura

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Ao acessar a internet na manhã da quinta-feira 18, eu me deparei com as ações em torno do Dia Nacional da Luta Antimanicomial. A data é um marco na luta pelos direitos das pessoas em sofrimento mental e de seus familiares.

Refletindo sobre a data, lembrei da Hortência, uma prima da minha mãe que era mentalmente adoecida, o que fazia dela uma pessoa estigmatizada e discriminada. Na minha infância, em função do preconceito e da ignorância, eu e muitas crianças tínhamos medo dela. Hortência já não está entre nós. Morreu incompreendida e sem o devido tratamento. 

Lembrei também da grandiosa Stella do Patrocínio, mulher negra e poeta, vitimada pelo racismo e pela brutalidade do sistema manicomial. Nascida no Rio de Janeiro em 1941, assim como um número significativo de afro-brasileiras, Stella chegou a prestar serviços como trabalhadora doméstica. Por portar no corpo a “pele escura”, como diriam os Racionais MC’s, aos 21 anos de idade, foi colocada em uma viatura enquanto esperava um ônibus em Botafogo, bairro da Zona Sul carioca. Inicialmente, os policiais a levaram para um Pronto Socorro.  Logo depois, de forma involuntária, sua vida estava entregue ao Centro Psiquiátrico Pedro II. Lá, recebeu o diagnóstico de esquizofrenia. 

Quatro anos depois, em 1966, houve a transferência da jovem para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Somente vinte anos mais tarde, graças ao trabalho das psicólogas Denise Correia e Marlene Sá Freire, que criaram um ateliê artístico no manicômio, Stella do Patrocínio revelou sua face de poeta. Segundo a jornalista Roanna Azevedo, “as coisas que [Stella] falava eram envoltas por um tom poético, chamando a atenção dos professores de arte, principalmente de Carla Guagliardi, que começou a gravar em fitas cassetes algumas das conversas que tinha com Stella”, entre 1986 e 1988.

Conheci a poesia e a trajetória de Stella do Patrocínio em uma das edições do Colóquio Nacional Mulheres em Letras, realizado durante alguns anos pelo Grupo de Pesquisa de mesmo nome, coordenado pela professora Constancia Lima Duarte. Na ocasião, uma estudante de doutorado da UFRJ apresentou um artigo sobre a escritora carioca.

Fiquei impactada com a história, com a “escrevivência” de Stella, com a violência e abusos que ela sofreu. Questionei: como eu nunca ouvira falar de Stella do Patrocínio?

Assim como muitas escritoras negras, a obra e o legado de Stella do Patrocínio ainda são pouco lembrados nos planos de ensino de Literatura. O mesmo ocorre nos cursos da área da saúde. Em 2001, a genialidade de Stella pôde ser compartilhada a partir de seus poemas-vozes, reunidos pela filósofa Viviane Mosé no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Em um dos poemas, a poeta registrou a violência a que era submetida: “Eu não sei o que fazer da minha vida / Por isso eu estou triste / E fico vendo tudo em cima da minha cabeça / Em cima do meu corpo / Toda hora me procurando, me procurando / E eu já carregada de relação sexual / Já fodida / Botando o mundo inteiro pra gozar e sem nenhum gozo”. Finalista do Prêmio Jabuti, infelizmente a publicação encontra-se esgotada. 

Silenciada nas universidades, nos livros didáticos e desconhecida do grande público, Stella do Patrocínio morreu só, em 20 de outubro de 1992, depois de passar 26 anos internada na Colônia Juliano Moreira. Após ter a perna amputada em uma cirurgia, o coração de Stella não resistiu a uma parada cardíaca. Ela acabou sepultada como indigente. 

É justamente para que histórias como a de Stella do Patrocínio e de Hortência não se repitam que ativistas da luta antimanicomial seguem perseverando. Trata-se de uma luta por direitos humanos, por cidadania, pela dignidade e pela vida. Uma luta que deve ser abraçada por todos nós.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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