Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

No centenário de Dona Ivone Lara, o orgulho de tê-la conhecido

Fui invadida por um sentimento de gratidão por testemunhar a presença marcante no palco

Foto: Acervo / Divulgação
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“Você entrou na minha vida, usou e abusou, fez o que quis / E agora se desespera, dizendo que é infeliz / Não foi surpresa pra mim, você começou pelo fim / Não me comove o pranto de quem é ruim / Quem sabe, essa mágoa passando, você venha se redimir / Dos erros que tanto insistiu por prazer, pra vingar-se de mim / Diz que é carente de amor, então você tem que mudar / Se precisar, pode me procurar…”

Quem frequenta rodas de samba não me deixa mentir: quando os versos acima são entoados pelos músicos, o mundo acaba. É o céu, a glória, a redenção. É a verdadeira apoteose. “Tendência”, uma parceria de Jorge Aragão com Dona Ivone Lara, cantora e compositora cujo centenário foi completado no último 13 de abril, está entre as mais belas canções da carioca nascida em 1922, no bairro de Botafogo.

Sinto-me muito honrada em olhar para trás e poder dizer que a conheci pessoalmente. Uma dádiva, uma bênção. Era 2.000. Naquele ano, a Inconfidência, rádio pública de Minas Gerais dedicada à MPB, transmitia um programa diretamente da praça de alimentação do Bahia Shopping, que já não existe mais. Era frequentadora assídua. Fazia questão de estar lá nas manhãs de sábado. Em um desses eventos, Dona Ivone Lara foi uma das convidadas. Atravessei a cidade para ir ao encontro da primeira mulher a integrar uma ala de compositores de escola de samba no Brasil.

Na apresentação, Dona Ivone Lara nos brindou com seus sucessos. Intérprete de primeira grandeza, cantou “Sonho meu”, “Acreditar”, “Alguém me avisou” e tantos outros. Ao interpretar “Sorriso negro”, lembrou que samba também é música de protesto, é um ato político: “Negro sem emprego / Fica sem sossego / Negro é a raiz da liberdade”.

Durante o show, Dona Ivone Lara contou que era enfermeira e assistente social de formação. Para mim, foi uma descoberta. Infelizmente, essa história permanece desconhecida por muita gente. A sambista teve papel importantíssimo no campo da terapia ocupacional, uma vez que, ao lado da médica Nise da Silveira, atuou na elaboração de tratamentos humanizados em saúde mental, numa época em que se defendiam choques elétricos, internações compulsórias e o cárcere como formas de cuidado para pacientes que apresentavam transtornos mentais. A pouca visibilidade e o apagamento da relevância de Dona Ivone Lara para a saúde pública brasileira mostram o quanto o racismo tem servido também para silenciar o legado e as contribuições das mulheres negras para a construção do País.

Guardei tudo na minha memória, nas minhas retinas. Na época, eu não tinha celular ou câmera fotográfica para registrar aquele momento único, mágico. Fui invadida por um sentimento de gratidão por testemunhar a presença marcante de Dona Ivone Lara no palco. Mal sabia que seria a primeira e a única vez que iria vê-la e ouvi-la.

Encantada, arrebatada, tomada pela música, pela força, pela arte de Dona Ivone Lara, não resisti. Ao final do show, me aproximei. De perto, bem de perto, vi uma mulher vaidosa, elegante, maquiada, de cabelos, pele e sobrancelhas impecáveis, cheia de anéis nos dedos. Uma autêntica dama do samba. Eu lhe disse o quanto a admirava. Com um sorriso, ela respondeu: “Obrigada, minha filha!”. Meio sem jeito, pedi um abraço. No meu ser, ficaram as lembranças desse encontro e o perfume dela.

Dona Ivone Lara, que nos deixou em abril de 2018, chega ao seu centenário como um dos maiores nomes do samba, da música popular brasileira. Dona Ivone abriu portas, enfrentou o racismo, o machismo, permaneceu altiva e imponente em espaços que não foram pensados para mulheres como ela, a exemplo dos campos da medicina e da ciência. E eu, uma adolescente negra que achava importante conhecer, saber sobre samba e MPB, pude conhecê-la de perto, abraçá-la. Tenho que admitir: apesar de tudo, a vida tem sido muito generosa comigo. Que sorte a minha!

Viva Yvonne da Silva Lara! Viva Dona Ivone Lara! Viva a grande dama do samba!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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