Eliara Santana

Pesquisadora Associada do CLE/Unicamp e uma das criadoras do Observatório da Desinformação.

Opinião

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No campo da fé

Em meio à guerra santa eleitoral, é preciso usar a linguagem do oponente para desmontar o discurso construído pelo sistema de desinformação bolsonarista

Oram pelo Messias. Não o descrito na Bíblia, mas aquele que prega o ódio - Imagem: Nelson Almeida/AFP
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A primeira-dama Michelle Bolsonaro, que trouxe para o centro do debate político a figura do demônio, traz agora, pregando em igrejas no Nordeste, a ideia de uma guerra espiritual. Paramentada de verde e amarelo, corte de cabelo e maquiagem em dia, ela alerta os fiéis: “O inferno está se levantando”. Desde a semana passada, Michelle e a ex-ministra Damares Alves fazem um tour religioso por capitais do Nordeste.

Os elementos que elas trazem em seus discursos recuperam, ressignificam e atualizam categorias do discurso religioso como “demônio”, “inferno”, “vingança” e “luta do bem contra o mal”, alimentando a narrativa de uma guerra santa, em que prevalece a figura simbólica de um Deus bélico, a justificar um levante dos cristãos com todas as armas disponíveis para vencer o diabo inimigo. Para a primeira-dama, o PT é o próprio “Partido das Trevas” e está associado ao Tinhoso.

Na consolidação do sistema de desinformação bolsonarista, a religião, ou as categorias do discurso religioso, é um elemento essencial, potente, especialmente no ecossistema de fake news ou de produção de mentiras – um esquema muito profissional, a envolver diversos atores e com farto financiamento. O desenho do ecossistema nos mostra que a produção e a disseminação de mentiras não são obras do acaso, tampouco aleatórias. E essas mentiras bem elaboradas, que usam o substrato da religião, são efetivas porque dialogam com as crenças, os medos e os valores das pessoas. A visão de mundo de cada indivíduo não é puramente racional, há componentes da ordem do emocional e das crenças.

O bolsonarismo, na consolidação desse sistema efetivo de desinformação – presente não somente nas redes sociais, mas também em estratos da mídia tradicional hegemônica –, tem mostrado que os sistemas simbólicos e de poder (religioso, midiático) estabelecem grande interface. As intervenções e narrativas de atores-chave como a primeira-dama e Damares Alves não se restringem aos atos públicos nas igrejas ou às redes sociais. Ao contrário, tudo isso circula pelos sistemas e é potencializado nessa interface. Os meios tradicionais reproduzem e potencializam o discurso, dando novos elementos de encenação, assim como as redes sociais. Essa circulação cristaliza e potencializa ideias como a de um demônio que precisa ser combatido. Vale aqui lembrar que o Deus evocado por esses agrupamentos e pelas igrejas neopentecostais é um deus bélico, vingador, o que justifica as armas e as formas de combate ao inimigo na luta do Bem contra o Mal, ou do Messias (Jair) contra o Satã (Lula).

A religião sempre esteve presente na política. A novidade está na exploração da crença na difusão massiva de fake news

Nessa discussão, creio ser importante considerar três aspectos principais: 1. O Brasil é um país religioso, seus cidadãos têm e professam sua fé, rezam, oram, vão ao terreiro, enfim, há uma forte religiosidade, de modo geral. 2. Os valores morais e as crenças, em grande parte, são alimentados pela fé religiosa. 3. A religião sempre esteve presente na política, isso não é novidade – a religiosidade pauta a vida nacional, o que impacta de alguma forma a discussão político-eleitoral. A novidade está no modo neopentecostal trazido pelo bolsonarismo e na incorporação de elementos religiosos à produção de desinformação e mentiras.

Nesse escopo, antes de cairmos em tentação e no pecado do lugar-comum e das soluções fáceis, devemos prestar atenção a outro detalhe: as igrejas, as ­religiões, são lugares de acolhida, de pertencimento, para onde os fiéis vão em busca de conforto – entender isso ajuda a compreender a efetividade do discurso de desinformação calcado nos valores religiosos. Portanto, se a construção simbólica de um demônio me apavora, e a igreja que me acolhe afirma que determinado candidato encarna o diabo, eu preciso usar as armas de Deus para combater esse inimigo.

Os sistemas se articulam e, nessa articulação, o fluxo da desinformação tem impactos significativos. Um exemplo: em agosto, pesquisa Datafolha mostrava que o ex-presidente Lula praticamente empatava, em intenção de voto, com o presidente Jair Bolsonaro entre os evangélicos mais pobres. A partir daquele momento, Michelle e Damares Alves entraram de forma muito efetiva na campanha, trazendo o perigo do inferno à cena política. A demonização do oponente surtiu efeito, com Bolsonaro crescendo entre essa fatia do eleitorado.

Fonte: Google / Elaboração: Observatório das Eleições

Então, logo após o primeiro turno das eleições, o PT divulgou um vídeo mostrando o ex-capitão em um encontro na maçonaria – o que não era fake news, importante lembrar, mas confrontava a narrativa moral religiosa do bolsonarismo. O vídeo viralizou nas redes sociais e encurralou, por algum tempo, o campo bolsonarista na elaboração da contranarrativa – o campo lulista obteve mais engajamento nas redes sociais em razão do vídeo, naquele momento. O gráfico reproduzido nesta página, de um dos levantamentos feitos pela equipe de Redes do Observatório das Eleições, mostra o enorme aumento das procuras no Google pelo tema “Bolsonaro maçonaria”, com pico em 4 de outubro (data de divulgação do vídeo).

Depois de ser acusado de ser identificado como o inimigo a ser eliminado, “varrido”, o PT contra-atacou no terreno religioso do adversário. Na guerra santa do segundo turno, quando o que está em jogo é a retomada da democracia e a reconstrução nacional, com o campo bolsonarista valendo-se de um poderoso sistema de desinformação, parece-me ser preciso usar as armas e a linguagem do oponente da melhor forma. •


*Jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa com foco na Análise do Discurso. É pesquisadora do Observatório das Eleições e do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: https://observatoriodaseleicoes.com.br

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “No campo da fé”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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