Opinião

No Brasil, o genocídio foi praticamente naturalizado

A constituição brasileira possui mais de um artigo que garante o direito e – de certa forma – o dever de resistir ao arbítrio. Por que não os conhecemos de cor?

Manifestações contra Bolsonaro acusaram governo de genocídio. Foto: Rener Pinheiro
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“Nada lhe trará paz a não ser você mesmo.”
Emerson.

Por que nos tornamos impotentes?

Na cultura ocidental, machista e falocrêntrica, a pergunta assume, primordialmente, conotação sexual, o que indica o caráter de tabu com que se trata a questão, dificultando, em muito, a resposta.

Entretanto, o tema é deveras mais amplo.

Tanto amplificado que atinge a esfera política – e talvez nela encontre justamente o campo mais apropriado.

No Brasil pós-golpe de 2016, fala-se frequentemente do risco de “um golpe dentro do golpe”, nos moldes do que ocorrera em 1968, em que o AI-5 aprofundou as arbitrariedades da quartelada de 1964.

Em vez de ficarmos prescrutando as vísceras da cloaca que nos desgoverna, por que não nos preparamos para reagir – pacífica e inteligentemente – a qualquer tentativa de aprofundamento da pocilga em que fomos jogados?

A constituição brasileira possui mais de um artigo que garante o direito e – de certa forma – o dever de resistir ao arbítrio.

Por que não os conhecemos de cor?

A constituição alemã, por razões óbvias, possui dispositivos ainda mais claros e, coerentes com a cultura daquele país, sucintos, dispondo sobre sobre a possibilidade de resistir aos desmandos: fazê-lo sendo mesmo um dever.

Dessa maneira, a sociedade alemã deu mostras concretas do desejo de prevenir novos desastres, como fora o III Reich.

Com efeito, nos julgamentos de Nuremberg, em que os nazistas se tornaram réus pelos crimes contra a humanidade que perpetraram durante a Segunda Guerra Mundial, o argumento de que muitos dos genocidas cumpriam ordens não foi aceito, sendo, evidentemente, descabido o excludente de ilicitude para homicídios e, ainda mais, para aqueles coletivos, em massa, como foram o genocídio de judeus, homossexuais, opositores do regime, ciganos e Testemunhas de Jeová, entre outros grupos vitimados pelo ódio da extrema-direita, a mesma – em versão colonizada – que desgoverna o Brasil atualmente.

Tentativa semelhante de isentar os militares argentinos, uruguaios e chilenos, torturadores e assassinos de opositores das respectivas ditaduras, não prosperou nos tribunais, sendo rejeitadas as defesas baseadas na obediência criminosa.

Triste notar que, em contraste, no Brasil, o genocídio foi praticamente naturalizado.

Em “Império Caboclo” (editora da UFSC), Donaldo Schüler afirma sobre a Guerra do Contestado: “A guerra do Contestado foi o maior levante popular do Brasil. Oito mil sertanejos em armas, envolvendo vinte mil pessoas numa área…maior que a Dinamarca, maior que a Suécia, maior que a Holanda, do tamanho de Sergipe. Para esmagar o movimento, o Presidente da República convocou o melhor general da época, Setembrino de Carvalho. Ele atacou com sete mil soldados, metade do efetivo das forças armadas…A guerra do Contestado se prolongou por quatro anos…”.

Na citada obra, o autor reflete o pensamento das vítimas, os agricultores sem-terra: “A guerra começou há muito tempo e não acaba. Sempre tem alguém que não é daqui e diz que não está direito, que certo só o que vem de longe. Atiram na gente, mandam sair, que dono nós não somos do lugar em que a gente nasceu e onde nasceram nossos pais.”

Diante de tanto excesso de poder, Schüler elocubra: “Quem domina determina o que é bom e o que é mau. Não é insensato pensar que a própria linguagem nasceu de atos autoritários dos que detêm o poder.” O erre dos interioranos não é estigmatizado por ser um resquício da fala guarani? No fundo, não é estigma do branco contra o indígena, cuja cultura tem de ser apagada, para melhor legitimação do esbulho da terra indígena pelo branco?

Com efeito, Schüler pondera: “Setembrino dizia ‘inimigo’. Inimigo encobre velhos, mulheres e crianças. Quem diz ‘inimigo’ justifica o massacre. A escolha do vocabulário obedece a princípios estratégicos. Os adversários não eram brasileiros. Apesar de terem nascido no Brasil, eram inimigos. Nativos e forasteiros: caboclos, argentinos, italianos ou alemães, todos levavam a mesma marca: inimigos… Guerra de gente rica contra maltrapilhos e famintos…Presidente que manda atirar em cidadãos brasileiros é coronel.” Ou tenente promovido a capitão, ao ser reformado por incapacidade mental…

O escritor em apreço bem interpreta o contexto: “Conservadorismo significava aqui latifúndio, mandonismo, escravismo, racismo, concentração de riquezas, desrespeito aos direitos humanos…Quando não são os gringos da estrada de ferro, são os coronéis, delegados, superintendentes, deputados, senadores, padres, o diabo. Todos tiram o couro da gente e tudo muito bem, na justiça e na santa paz de Deus…Conheço os tribunais daqui e de alhures. Observei que os daqui só condenam pobres coitados sem dinheiro. Me cite um único coronel que tenha sido posto na cadeia por estupro, que tenha sido condenado por assassinato ou apropriação indevida?”.

Fazendo paráfrase do lema do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), cabe-nos ocupar, resistir e produzir direitos, para que os contrários ao Direito sejam definitivamente alijados do arbítrio, do crime, da injustiça – de todo e qualquer gênero.

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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