Opinião

No Brasil, a quartelada aprofunda o genocídio

‘E ainda querem nos fazer crer que o flagelo ocorre por geração espontânea’, escreve Milton Rondó

No Brasil, a quartelada aprofunda o genocídio
No Brasil, a quartelada aprofunda o genocídio
Foto: Alex Pazuello/Semcom
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“Não nego a necessidade objetiva do estímulo material, mas sou contrário a utilizá-lo como alavanca impulsora fundamental. Porque ela termina por impor sua própria força às relações entre os homens”.
Che Guevara.

O guerrilheiro argentino descreveu brilhantemente a fórmula do que seria o desastre brasileiro em 2016: ter assentado o modelo progressista na evolução material da população, principalmente. Quando aquele arrefeceu, a direita pode desferir o golpe na democracia, tomando o poder.

Não é um acaso que justamente no país em que o Comandante entregou sua vida pela libertação dos oprimidos, a Bolívia, o contrário tenha acontecido: após um ano de golpe de estado, a legalidade retornou, a democracia se afirmou, a liberdade refloriu.

A propósito, dizia também o médico argentino: “Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais completos; somos mais completos por sermos mais livres”.

Aqui, ao invés, a quartelada aprofunda o genocídio e ainda querem nos fazer crer que o flagelo ocorre por geração espontânea, sem que haja genocidas (que são muitos e estão em ordem unida).

Pior, negam ainda que o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff tenha sido um golpe, quando basta ler o artigo 85 da Constituição Federal – que tipifica os crimes de responsabilidade – para se dar conta de que pedaladas fiscais não constam dele.

No entanto, nada disso interessa à oligarquia local e internacional. Para elas, a democracia não é bem final, mas mero instrumento para galgar o poder. Na medida em que não vencem as eleições, abrem mão dela, sem qualquer pudor ou rubor.

Bem observou Darcy Ribeiro, em América Latina: A Pátria Grande: “A classe dominante…tanto se atrelou a interesses e ideias estrangeiras, primeiro inglesas, depois norte-americanas, e tanto se cevou em subornos e propinas, que converteu a América Latina num conjunto de colônias atípicas. Funcionando, de fato, como colônias, se engabelaram com a ideia de que eram nações livres macaqueando parlamentos de mentira. Estes só serviram, de fato, para promulgar leis antipopulares e reacionárias, consagrando a riqueza dos ricos e a pobreza dos pobres”. Alguma semelhança com o atual Congresso Nacional, em que uma minoria luta contra uma esmagadora maioria vende pátria?

Prossegue Darcy Ribeiro em sua radiografia: “Esse empresariado tem, porém, a seu crédito a façanha de ter promovido uma relevante modernização reflexa de seus países, implantando ferrovias, importando caminhões e iluminando cidades, tudo para os tornar ainda mais eficazes no seu papel de provedores do mercado mundial.”

Na maravilhosa análise que faz, Darcy vai às raízes políticas das Américas ao afirmar: “Além das oposições classistas, existem e persistem outras tensões, como as interétnicas, que são mais antigas e, em muitos casos, mais vigorosas e até mais dinâmicas. Com efeito, as primeiras sociedades de classe aparecem há cerca de de seis mil anos, enquanto as identificações étnicas e os conflitos resultantes de suas oposições são muitíssimo mais antigos…Classes sociais formadas secularmente debaixo da escravidão são quase castas”.

Sim, bravo Darcy, quando as classes sociais têm cor, como no Brasil, não são apenas classes, mas castas, de mobilidade ainda mais remota ainda.

Talvez esse seja o dado luminoso em meio às trevas em que vivemos: o ingresso de negras e negros, em número cada vez maior, nos órgãos legislativos municipais, como vimos nas últimas eleições.

O grande pensador arremata: “Se os patronatos nativos e consulares organizaram nossos países para seu próprio enriquecimento e gozo, esses gerentes e a tecnoburocracia que os sucederam os reorganizaram, ainda mais eficazmente, para o lucro de suas matrizes…Trabalham afanosamente, quase afoitos, na certeza de que precisam tirar o máximo de nossos países porque espoliação tão desavergonhada não pode durar.”

Assim como o Che, ao ir à gênese dos processos sociais, Darcy descortinou cenários políticos passados e futuros, atualíssimos.

Apesar das múltiplas e constantes ameaças de aprofundamento do golpe de estado por parte do genocida e suas forças (obesas, de tanta guloseima superfaturada), vem em nosso socorro uma ética internacional que ajudamos a construir e que agora limita e detém os golpistas, como ainda nos lembra Darcy: “…vai ficando evidente que todos estamos condenados à democracia. A direita, porque os próprios norte-americanos revelam um temor crescente em confiar a guarda de sua hegemonia continental a ditaduras militares odiadas pelas populações latino-americanas. As esquerdas porque, dissuadidas das ilusões de uma nova revolução socialista de exceção, estão compelidas a ingressar no processo político eleitoral e na luta sindical como as arenas dentro das quais terão de viver o seu papel histórico.”

Desse ponto de vista, estão melhores os setores progressistas, cujas limitações são internas e não externas, ao contrário dos golpistas, cujos horizontes internacionais estão cada mais mais limitados. A título simbólico, atualmente, só seis países aceitam a entrada de brasileiros e brasileiras.

Que ao menos esta tragédia nos traga mais humildade, mais interesse no conhecimento – inclusive das culturas vizinhas – e maior disponibilidade em acolher o próximo, suas vivências, lutas, derrotas e vitórias.

Aos genocidas – de sapatos ou coturnos – não desejemos a morte, mas que se convertam ao bem, à vida e à verdadeira liberdade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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