Opinião

No Brasil, a extrema-direita não economizará todo tipo de manipulação

Inclusive as que remetem ao moralismo vitoriano, que se moldou à amoralidade do capitalismo do século XIX

Foto: EVARISTO SA / AFP
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“A tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo.”
Gustav Mahler.

A citação acima foi feita pelo Papa Francisco no livro “Eu creio, nós cremos” (Editora Paulus), em que respondeu a perguntas do italiano Marco Pozza.

A lembrança daquela reflexão de Mahler, compositor judeu, austríaco, é ainda mais válida, quando muitos mantêm visão redutiva do Natal.

Na verdade, a comemoração do solstício no dia 24-12 é antiquíssima festa pagã, muito anterior à decisão dos cristãos de fazerem coincidir com ela a data do nascimento do Menino Deus.

Nesse sentido, o Natal é um arquétipo da renovação, da luz que vence as trevas, da conversão de valores, que largamente transcende o cristianismo, como Carl Gustav Jung bem notara.

Vale observar que a terra natal do Menino Jesus é Belém, o menor dos povoados de Judá, cujo nome, em hebraico, quer dizer “cidade do pão” e em árabe “cidade da carne”. Ou seja, na junção das três culturas abraâmicas conseguiremos encontrar o arquétipo do pão que se faz carne (e da carne que se faz pão).

Recentemente, a União Europeia propôs que se retirasse o nome do Natal das festas de fim de ano, substituindo “período de Natal” por “período de festividades”.

A grita foi grande e não se procedeu à mudança, que, de fato, parecia assimilar cinza a fogo, algo tão enganoso quanto assimilá-lo à mera fumaça.

Naquela mesma obra, o Papa Francisco recorda que: “…a diferença deve ser mantida, pois é boa; a divisão é uma perversão da diferença e é ruim.”

Essa verdade deverá servir-nos de guia nas próximas eleições, principalmente no que toca às alianças, que exitosamente conduziram frentes progressistas à vitória no Peru, em Honduras e no Chile, neste ano.

Sabe-se que aqui a extrema-direita não economizará todo tipo de manipulação, inclusive as que remetem ao moralismo vitoriano, que se moldou à amoralidade do capitalismo do século XIX, encobrindo-lhe os horrores e, dessa forma, desviando a atenção da opinião pública do inferno a que estava relegada a classe trabalhadora na Inglaterra vitoriana.

A propósito, na obra em apreço, o Papa Francisco cita um sacerdote amigo que lhe afirmara: “Os pecados mais graves são os que têm maior angelicidade: orgulho, arrogância, dominação…E os menos graves são os que têm menor angelicidade, como a gula e a luxúria.”

Vale notar que Francisco estava particularmente inspirado no Natal, recordando que atualmente há mais armas no mundo do que durante a Guerra Fria. Em contrapartida, só um terço das pessoas em idade laboral conta com proteção social.

No Oriente Médio, segundo a Vatican News, 75% das famílias libanesas estão na pobreza e 1/3 das famílias sudanesas irá necessitar de assistência humanitária.

Aliás, seria interessante indagar a todos os que defendem o estado mínimo quantos deles já estiveram no Líbano? Por que não vão? Por que temem ver ao vivo o experimento que defendem encarniçadamente?

A esse respeito, o filósofo italiano Umberto Eco, em “Construir o Inimigo” (Editora Record), refere: “Quanto ao resto, as viagens medievais eram imaginárias. O Medioevo produz enciclopédias, Imagines Mundi que tentavam sobretudo satisfazer ao gosto pelo maravilhoso, falando de países distantes e inacessíveis: são livros escritos por pessoas que nunca tinham estado nos lugares de que falavam, pois na época a força da tradição contava mais do que a experiência.”

Segundo esse critério, a nossa imprensa hereditária seria medieval, o que me parece metodologicamente exato.

Sempre brilhante, naquela obra, Eco tece outras considerações profundas sobre o atual papel da imprensa: “…agora, mais do que registrar as notícias relevantes – e outrora quem decidia quais eram as notícias relevantes eram os governos, declarando uma guerra, desvalorizando uma moeda, assinando uma aliança -, ela decide autonomamente que notícias se tornarão relevantes e quais serão silenciadas, e chega mesmo a acordar (como já aconteceu) com o poder político quais ‘segredos’ desvelados revelar, quais calar.”

Ampliando para o território da diplomacia, o filólogo italiano aduz sobre a atuação contemporânea dos meios de comunicação: “(À parte o fato de que – visto que todos os relatórios secretos que alimentam ódios e amizades de um governo proveem de artigos publicados ou de confidências de jornalistas a um adido da embaixada – a imprensa está assumindo também outra função: antes espiava o mundo das embaixadas estrangeiras para conhecer suas tramas ocultas, agora as embaixadas espiam a imprensa para conhecer as manifestações que revela…).”

No Angelus, o Papa Francisco recomendou-nos buscar a pequenez de Jesus, que nasceu pobre, em povoado insignificante (atualmente sob ocupação estrangeira, israelense) e morreu por condenação do império (como poderá ocorrer com Julian Assange, se for extraditado para os EUA).

Além de “Uma canção de Natal”, de Charles Dickens (Companhia das Letras), belíssimo conto vitoriano, recomendo igualmente, para esta época de reflexão, “O livro dos elogios – o significado do insignificante” de Leonardo Boff (Editora Paulus).

Bom Natal a todas e todos, na Oitava do Natal.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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