Nirlando Beirão é o mestre das palavras e das ideias

Ele escreve sobre a aventura solitária de fim marcado à nossa revelia

Apoie Siga-nos no

Permito-me comparar Nirlando Beirão a um alguém que vai ao baile, praticante pontual de todos os passos e rodopios, mas destinado por sua natureza a perceber a banalidade da festa e o labor ginástico dos dançarinos, enlaçados com o empenho obsedante de evitar infamantes pisões, com a bonomia que lhe é própria, sempre vincada pelo senso de humor em doses irreparáveis.

Conheço Nirlando, a deitar raízes na Beira Alta, donde Beirão, faz 51 anos, ele não completara 20, eu tinha 34. Meados de 1968, eu costumava comparecer na redação do Jornal da Tarde, que dirigira até poucos meses antes, para visitar os amigos. Nirlando, que logo se tornaria o Nirla pela minha voz, acabava de chegar de Minas, e de pronto gostei dele, entendi que não se levava a sério e que, talvez, encarasse o jornalismo como atividade de escasso alcance.

Sobram momentos de exceção: o Brasil da mais sombria Idade Média precipitado pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela prisão sem provas de Lula, e tudo quanto se seguiu até a instalação da demência como forma de governo, isto sim inquieta Nirlando.

Do seu livro, Meus Começos e Meu Fim, editado pela Companhia das Letras, a ser lançado no próximo dia 26, pretendo falar. Uma obra-prima, prometo e garanto, na escrita e no conteúdo, um livro sobre a morte e a vida, a inexplicável aventura solitária de fim marcado à nossa revelia. Queira ou não o Nirla, há páginas ali francamente proustianas, embora nas suas últimas leituras ele tenha preferido Hemingway ao gigante da Recherche. Compreendo, mas não concordo: aquele foi um jornalista que, ao escrever, lembrava-se dos seus tempos de Toronto Star, enquanto se regozijava infantilmente quando Scott Fitzgerald no mictório público não escondia seu irrisório membro viril. Resta a verdade factual: o texto de Nirla é deslumbrante. Ele consegue tecer na mesma tela o seu destino e o enredo percorrido pelo avô pároco, Beirão originário, vítima da tentação da serpente enrolada no tronco da árvore do Bem e do Mal, e, a despeito do pecado da fornicação proibida, punido pela excomunhão, digno, no entanto, de levar uma existência de comerciante e morrer pranteado.

Aflorou à memória a história de Fi-lippo Lippi, grande pintor e frade pecador em circunstâncias similares àquelas vividas pelo velho Beirão. É certo, porém, que a Florença do século XV, já em plena Renascença, era bem mais mundana e tolerante do que Mangualde e mesmo Viseu, em Portugal do século XX, e Oliveira, em Minas, etapas do trajeto do avô. Até os papas tinham filhos. Do pecado do frade artista nasceu outro extraordinário pintor, Filippino Lippi, autor de Visitação dos Magos em uma capela de Santa Maria alla Minerva, em Roma, obra de sublime encanto, saída de um pincel esteticamente tão delicado quanto a pena do Nirla. O qual, graças à evocação do avô Beirão, vasculha a sua infância, juventude e idade madura, busca enlevado as raízes lusitanas e alcança os sentimentos mais profundos do leitor, ou até o obriga a descobri-los pela primeira vez.


Nirlando e eu trabalhamos juntos muitas e muitas vezes desde seu retorno de Paris, onde fora enviado pelo Jornal da Tarde após nosso primeiro encontro e por vias diretas surgiu na redação de Veja, que eu dirigia na oposição à ditadura. Illo tempore, o Nirla envergava em ocasiões de relevo um paletó de veludo azul que lhe conferia uma distinção de algum retratado por Gainsborough, ainda que minha mulher, Angelica, apontasse nos olhos dele o brilho caridoso dos santos barrocos invocados por Zurbarán. Conviver com ele foi e é risonho, de sorridente serenidade e de natural, escorreita afinação de partituras aparentadas, sem contar a segurança que ele me infunde quando assume tarefas específicas. Tenho por ele o carinho do primogênito pelo irmão temporão.

Hoje me dói que ele trafegue na cadeira de rodas, me dói muito o sonho por ele sonhado do sapateado angelical de Fred Astaire, ou muscular de Gene Kelly, com a certeza, ainda assim, de que o Nirla lograria fundir os dois estilos fosse ele bailarino. Agora o percebo, nem sei se de caso pensado, aportar à lição essencial de Spinoza, o filósofo filho de judeus portugueses forçados a viver na Holanda para fugir dos Autos da Fé. Nirlando ouve-lhe a recomendação: nem fé, nem medo.

?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> src="https://i.ytimg.com/vi/Bw-0cE3DPGc/hqdefault.jpg" layout="fill" object-fit="cover">

 

Leia também

Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.

Já é assinante? Faça login
ASSINE CARTACAPITAL Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e tenha acesso total ao site.
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

1 comentário

WILLIAM MENDES DE OLIVEIRA 20 de março de 2022 03h53
Obrigado Mino, pelo texto sobre Nirlando Beirão, seu grande amigo! Abraços, William

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.